São Paulo, terça-feira, 15 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A revolução estancada

CRISTOVAM BUARQUE

A eleição do presidente Lula foi o maior passo em direção à revolução social brasileira desde a abolição da escravatura e a Proclamação da República. Mas, cumprido um terço do seu mandato, ainda não houve nenhum gesto para reorientar a estrutura social e o rumo do país. O Brasil continua com sua perspectiva de revolução estancada. E a razão está nas características do PT e na mentalidade do presidente e de seus auxiliares.
O PT nasceu no setor mais moderno do sindicalismo -a indústria automobilística e os servidores públicos-, que cresceu sem revolução, graças à concentração da renda, ao endividamento e ao desvio de recursos públicos da área social para a infra-estrutura. Dedicou-se a canalizar as reivindicações desses trabalhadores, aliando-se a grupos da esquerda tradicional e a setores populares. Mas não trouxe uma nova utopia para o Brasil. Daí a expressão "petismo" nunca ter se afirmado.
O PT chegou ao poder como um partido de reivindicações, sem um projeto claro e aglutinador para construir o Brasil do futuro, como se o futuro fosse apenas pleno emprego e melhores salários. Por isso, o governo Lula tem se concentrado na estabilidade monetária e na política comercial externa, esperando um "espetáculo do crescimento" que traria um Brasil sem pobreza nem desigualdade, com justiça social, moderno, soberano. Não há menção sistemática a um projeto alternativo, a uma utopia possível para a nação. Como se a esquerda sonhadora, irresponsável e utópica do passado, tivesse ficado pragmática, responsável e prisioneira do curto prazo.


A esquerda nascida no ABC chegou à Presidência com um projeto de poder, mas sem projeto para utilizá-lo


Prova surpreendente da falta de espírito transformador é a ausência de vocabulário novo, característica de países em mutação, com bandeiras e propostas novas. Nesses 17 meses, não vimos surgir vocabulário novo no Brasil. Fome Zero é apenas uma meta, importada de programas antigos, como os dos EUA e das Nações Unidas para países pobres. O Bolsa-Família é um programa que inova na administração, unificando programas criados pelo governo passado, mas que retrocede em termos de transformação social ao deixar, na prática, de condicionar a transferência de renda à freqüência escolar.
O governo argumenta que sua paralisia decorre da herança maldita recebida. Na verdade, há uma causa ideológica profunda para essa paralisia: a mentalidade, nascida e testada nas lides sindicais, que se limita às reivindicações do dia-a-dia. Nossos dirigentes têm mentalidade, não têm ideologia.
A esquerda nascida no ABC chegou à Presidência com um projeto de poder, mas sem projeto para utilizá-lo. Comprometido com os trabalhadores da indústria automobilística, o PT faz parte de uma esquerda que trabalha com o aumento da demanda, e não com o fim das necessidades. Em países pobres, a criação de demanda exige concentração de renda e desvio de recursos públicos para a infra-estrutura. Os programas sociais são complementares e, como em regimes de direita, assistenciais. Não vêm abolir as necessidades nem transformar a realidade.
O governo parece perplexo e percebe que, no mundo global, o setor público não influi na dinâmica da economia e não pode atender às necessidades dos empregados e desempregados da indústria. Com recursos limitados, não pode atender às reivindicações dos trabalhadores do setor estatal. Aos pobres sobram apenas programas assistenciais.
Falta ao núcleo do poder petista inspirar um novo projeto para o país. Combinar o pragmatismo do equilíbrio financeiro no curto prazo com a ideologia histórica do longo prazo. "Desestancar" a revolução.
Nunca foi tão necessário e possível mudar o Brasil, com uma revolução democrática, responsável, que combinasse crescimento econômico com equilíbrio ecológico e realizasse um choque social. Para isso o presidente Lula foi eleito -para desestancar a revolução, investir na educação e no crescimento econômico de um novo tipo, que atenda também às necessidades das massas, e não apenas à demanda dos consumidores, que respeite o meio ambiente, que não traga o endividamento do futuro.
Isso é possível, os recursos existem. Falta apenas vigor transformador. Para levar o plano adiante, o presidente Lula e seu governo precisam ser despertados e pressionados. E o instrumento é o PT. Apesar de seu nascimento reivindicatório, e não revolucionário, nenhum outro partido está mais perto de oferecer a energia política progressista de que o Brasil precisa.
O caminho está em não calar. Não confundir o partido, comprometido com a história, com o governo prisioneiro da administração. O silêncio em troca da camaradagem é uma traição histórica. No seu lugar, é preciso instalar uma lealdade crítica, mobilizar a base da nação petista para que ela desperte a cúpula do "Estado" petista. Caso isso não aconteça, só nos restará torcer para que outros partidos, talvez até os conservadores, entendam a necessidade de redirecionar a história do Brasil, desestancar sua revolução. Não apenas administrá-lo, mudá-lo.

Cristovam Buarque, 60, doutor em economia, é senador pelo PT-DF. Foi reitor da UnB (1985-89), governador do Distrito Federal (1995-98) e ministro da Educação (2003-04).


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