São Paulo, quinta-feira, 15 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Aprender com Leleco

GETULIO BITTENCOURT

Dois jovens alunos da Universidade Tuiuti, de Curitiba, Alexandre Costa Nascimento e Eduardo Mariot Araújo, estão preparando seu trabalho final do curso de jornalismo sobre a carreira de Haroldo Cerqueira Lima, o Leleco (1939-2003). Nós, os que conhecemos o trabalho desse jornalista que muito honrou esta casa, só podemos ficar satisfeitos por saber que a imprensa brasileira tem memória.
Conheci o santista Leleco quando ele era secretário de Redação na sucursal da Folha em Brasília, e fizemos parte da equipe do jornal que cobriu a visita do presidente Ernesto Geisel ao México em janeiro de 1976. Eu me embrenhava pelas livrarias do Paseo de la Reforma e da avenida Juarez, em busca de obras que me explicassem aquele país tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos, enquanto Leleco aproveitava diligentemente seus contatos diários com a estrutura do poder no regime militar.
A capacidade de trabalho dele e sua concentração no serviço que precisava ser feito eram extraordinárias. Lembro-me de que ele continuou em busca de notícias no hotel El Presidente Chapultepec, tarde da noite, quando decidi partir para o bairro boêmio da Cidade do México e pedir aos "mariachis" que tocassem "Las Golondrinas", a romântica canção de despedida que Sam Peckimpah usou para embalar as mortes lentas e intermináveis de seu filme "Meu Ódio Será Tua Herança", de 1969.


[Leleco] foi um profissional moldado pela experiência, não pela teoria, porque era autodidata em jornalismo


Leleco era o mais experiente dos editores da Folha em viagens internacionais, mas sua vida cotidiana em Brasília era mais voltada para a política interna. E ele foi um profissional moldado pela experiência, não pela teoria, porque era autodidata em jornalismo; seu plano original, na adolescência, era estudar medicina. Desse projeto inacabado, guardou talvez a preocupação com a saúde: não tinha barriga mesmo depois dos 40 anos. E raramente bebia, mesmo quando Rui Lopes, então o chefe da Sucursal de Brasília, descobriu no final da década de 1970 um vinho chileno extraordinário (Cousiño Macul Antiguas Reservas, hoje decadente), que acabou escolhido para os almoços com convidados da Direção da Folha.
A exceção eram os cigarros Hilton, que fumava desbragadamente, tanto que se lembrou dos cinco que o general João Figueiredo lhe filou, durante uma entrevista de 95 minutos que o tornaria famoso em abril de 1978: "Fala Figueiredo". Publicada em duas edições consecutivas do jornal e reproduzida na íntegra pelo "Jornal do Brasil", ela daria o primeiro Prêmio Esso Nacional de Jornalismo à Folha.
A entrevista com Figueiredo seria reproduzida muitas vezes no quarto de século seguinte, em vários livros, dois deles publicados pela própria Folha (parcialmente em "Primeira Página" e integralmente numa coleção de reportagens marcantes da história do jornal). O editor de "Imprensa", Tão Gomes Pinto, disse-me que o trabalho também foi escolhido como uma das melhores reportagens brasileiras do século 20 numa pesquisa que a revista fez com especialistas em 2002.
A Folha, que publicou a entrevista que Leleco e eu fizemos com Figueiredo em 1978, estava sendo reformulada por seu acionista Octavio Frias de Oliveira. Ele primeiro recolocou o grande Claudio Abramo na direção do jornal e, depois, investiu na contratação de jornalistas notáveis como Alberto Dines, Paulo Francis, Newton Rodrigues, Osvaldo Peralva, Tarso de Castro e Mauro Santayana.
A esse grupo Frias acrescentaria Boris Casoy, um talento que descobriu por acaso. Certo dia, o então governador paulista Laudo Natel lhe telefonou, queixando-se de que recebia do jornal uma cobertura menor que a do prefeito Figueiredo Ferraz. Frias foi investigar e ligou de volta para Natel, com a sugestão de que contratasse o assessor de imprensa de Ferraz, Boris Casoy, que era muito esperto: conseguia maior espaço porque divulgava muitas notas curtas, enquanto a assessoria de Natel divulgava poucas notícias longas.
Natel não seguiu o conselho, e Frias trouxe Casoy para escrever a coluna "Painel" da Folha, onde um de seus principais colaboradores seria Leleco. Já como diretor do jornal, Casoy foi convidado para entrevistar Figueiredo, em abril de 1978. E foi ele quem preferiu mandar Leleco e eu no seu lugar. Sua idéia era combinar o atrevimento dos jovens (eu tinha 26 anos) e a experiência e o bom senso de Leleco (que tinha 38 anos e juízo), para conseguir algo mais criativo que as entrevistas já publicadas por "IstoÉ" e "Jornal do Brasil".
Um jornalista que teve de exercer os anos dourados do seu ofício sob a ditadura militar, Leleco disse algo em sua entrevista ao semanário "O Pasquim" que serve também para os jornalistas que exercem o seu ofício sob o regime democrático: "Está na hora de o jornalista brasileiro fazer a reciclagem do seu comportamento, senão será como nos 40 anos de salazarismo (a ditadura portuguesa): os jornalistas desaprenderam a informar e vão ter que aprender de novo". Deve ser por isso que os jovens agora o homenageiam.

Getulio Bittencourt, 52, jornalista, é diretor de Redação do "DCI - Diário Comércio Indústria & Serviços". Foi editor e repórter da Folha.


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