São Paulo, domingo, 15 de julho de 2007

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Pan e circo


Com a abertura dos Jogos Pan-Americanos, país inteiro, e não apenas o Rio, vive o contraste entre a festa e a barbárie


SALTOS , corridas, arremessos, recordes: os Jogos Pan-Americanos tomam conta do noticiário, e mesmo algumas modalidades esportivas que usualmente despertam pouca atenção das autoridades e do público revelam, nestes dias, seu poder de encantamento e mobilização emocional.
Em meio ao clima dominante, passa por antipática, sem dúvida, qualquer manifestação de incômodo diante do espetáculo. A circunstância de que se desenvolve poucos dias após um sangrento conflito entre policiais e o crime organizado nas favelas do Alemão -enquanto denúncias de abuso e matança de inocentes ainda estão para ser investigadas seriamente- não deixa de projetar sobre as festividades uma sombra indesejável e sinistra.
Não se trata de, mais uma vez, superestimar os fatos da criminalidade no Rio de Janeiro, na perspectiva errônea de que cidades como São Paulo, Recife, Vitória ou Belo Horizonte pudessem oferecer estatísticas aceitáveis no tocante à segurança pública.
Eis aí, com efeito, uma competição nada esportiva -e nada inteligente. Cidades grandes e médias de todo o país teriam, a rigor, dificuldades imensas para sediar qualquer evento internacional sem contar com forças especiais de repressão ao crime.
Numa sociedade conflagrada, em que chacinas policiais e ações homicidas do narcotráfico se alternam com estarrecedora rapidez, o entusiasmo gerado pelo Pan adquire, de todo modo, significações contraditórias.
Pode-se ver nesses jogos tudo aquilo que, com algum clichê, cabe assinalar em ocasiões do gênero: os exemplos de congraçamento internacional, de superação dos limites humanos, de elogio ao vigor do corpo e à pertinácia do espírito. Os mais entusiasmados acrescentarão à lista a capacidade organizacional dos poderes públicos brasileiros -que, claro, seria melhor ver demonstrada de modo mais enfático no dia-a-dia da população.
Com essa perspectiva, algo de esperança se expressa, numa resposta compensatória às experiências brutais do cotidiano. Parece haver, contudo, um ponto em que a celebração legítima se transforma em alienação e anestesia; em que a emoção coletiva vem alimentar a insensibilidade individual; e em que tudo vem refletir, afinal de contas, a rotinização da violência, à qual já se dá menos atenção do que ao frenesi oficialmente construído em torno do espetáculo.
Suspendem-se banhos de sangue para comemorar medalhas de iatismo, silenciam-se as semi-automáticas para a audição do hino nacional, e balas perdidas esperam o resultado do vôlei para então prosseguir seu curso. Os governantes oferecem, enquanto isso, os números de sempre: saltos ornamentais e piruetas circenses de calamitoso efeito, entre denúncias de superfaturamento e sinais veementes de crise social.
O país inteiro, e não apenas o Rio, vive o contraste entre a festa e a barbárie. Que não se estrague a festa; mas que tampouco se ignore aquilo que, precariamente, veio interromper.


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