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São Paulo, sexta-feira, 15 de agosto de 2003

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JOSÉ SARNEY

Ovos de galinha preta

Uma coisa que ainda não ficou muito clara para todos os que vivem na era da comunicação global é a passagem do tempo. Enquanto a ciência avançou e estamos vivendo mais, o tempo está mais curto e estamos vivendo menos. É um paradoxo, mas de paradoxos construímos nossas vidas, que encurtaram.
Num só dia, vive-se um ano, e o ano corre com tanta velocidade que não conseguimos sentir que passou. O passado fica tão longe que se torna impossível apanhá-lo. E, nessa linha de paradoxos, o ontem é futuro, de tão longe. Não há mais o diferencial da velocidade dos fatos, que não são rápidos ou lentos, e sim instantâneos.
A pressão do acontecer persegue o tédio da espera. E o ideal é que as coisas sejam como Deus fez o mundo: num simples sopro.
Na vida política, há muito se aponta o fenômeno do envelhecimento, mecanismo dos tais "radicais livres". Dizia-me um interlocutor atento à vida parlamentar que não sabia mais quando tinham sido as eleições, porque o Congresso estava muito velho. As idéias, os partidos e a "vinculação partidária", de triste memória, são fósseis que só interessam a paleontólogos políticos. Dos programas partidários nem se fala. Todos também envelheceram. Não pelo esquecimento dos militantes, mas pela velocidade com que foram superados: os temas mudaram, as idéias criaram bolor.
Mas, se passarmos da política para a ciência, tudo também envelheceu. Envelheceu o buraco negro, cuja existência é contestada a todo lugar e hora. Surge a todo instante um novo modelo de computador -para apenas citar essa máquina diabólica que entrou em nossas vidas e coloca insatisfação em nosso cotidiano, com o desejo de trocar laptops. Se pensarmos em telefone celular, aí a coisa se torna de desesperar. Pela antiguidade com que o atual é sempre o ultrapassado. Aquela moça bonita e sedutora que aparece na televisão nos mostra novos aparelhos, com funções mágicas, visores coloridos, cálculos, mensagens e tudo o mais que nos leva à indignação e nos dá vontade de quebrar o nosso telefone, tão velho e imprestável se mostra.
Na economia, ficou tudo mais simples. O tempo real cria termômetros de avaliação de riscos, que se medem como se comprássemos dois metros de corda. Antigamente, explicam-me, a economia, para ser medida, precisava de tempo. As mesmas causas não tinham os mesmos efeitos, havia o intervalo. Hoje, tudo é diferente. Temos Dow Jones, Nasdaq, risco Brasil, IPCA, IPC, IGP-DI, IGP-M.
Para avaliarmos como as coisas são outras, Campos Sales, presidente em 1898, eleito, advertiu, diante da quebradeira geral, de que o país estava endividado e falido: "Só há um caminho para sairmos do charco: governo e Câmaras tomarem a iniciativa de não votar uma só despesa e votar todas as economias possíveis". O FMI de então chamava-se Casa Rotschild. Suas exigências para emprestar eram insuportáveis: o penhor das rendas das alfândegas, das estradas de ferro, da Companhia de Água e Luz do Rio e outras coisas mais.
Quando vejo a velocidade provocada pelo tempo real, leio a recomendação do brilhante cientista político José Luis Fiori para acertar os ponteiros do país : "Quebrar ovos". Evidentemente que não são os de galinhas pretas.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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