São Paulo, segunda-feira, 15 de setembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A cerâmica, o transistor e a bomba nuclear

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Eis a conclusão inelutável: a contribuição de um indivíduo é sempre muito maior quando trabalhando em grandes agrupamentos

O GRANDE salto tecnológico e estético na produção da cerâmica ornamental na China ocorreu durante a dinastia Song (960 a 1279 d.C.). Pesquisas arqueológicas recentes mostram que essa expansão fulgurante aconteceu em um único bairro, uma única rua mesmo, de Jingdezhen, onde se concentraram entre cem e 200 pequenos ateliês e seus respectivos fornos, acotovelando-se uns aos outros, colaborando, competindo, espionando, enfim, "trocando idéias, informações".
O fenômeno se repete em todo e qualquer ramo de criação artística ou artesanal. Joalheiros e ourives se agregam em "clusters", assim como artesãos de cobre e bronze, de jade, tecelões persas e turcos de tapetes, pintores (em Montparnasse, em Greenwich Village) etc. Mais recentemente, o Vale do Silício, com suas 10 mil empresas pequenas, médias e grandes, se mostrou imbatível na competição por inovação.
A interpretação corrente é a de que o responsável por esse sucesso é o intenso fluxo de trocas intelectuais informais decorrente da proximidade física entre pesquisadores. Réplicas, também espontâneas, do vale, tais como aquela da rota 128, em Boston ou em Grenoble, etc., confirmam essa conclusão. Como também a comprovam as centenas, talvez milhares de bem-sucedidos pólos tecnológicos e parques científicos criados nas últimas duas ou três décadas.
Entretanto, o exemplo mais espetacular da eficiência da concentração de cérebros é o Projeto Manhattan, em que um conjunto de pouco mais de 200 cientistas e engenheiros, em apenas dois anos, quando encerrados em Los Alamos, pôde, praticamente a partir do nada, conceber e fabricar dois tipos diferentes de bomba nuclear, além de lançar as bases para o futuro da informática e da internet.
Um conceito alternativo recente, denominado "efeito Medici", pretende que a criatividade resulta da interação entre culturas ou disciplinas distintas. De acordo com seu autor, Frans Johansson, diferentes campos, ao se "interceptarem", geram idéias inovadoras. A denominação "efeito Medici" resulta da observação de um surto de criatividade ocorrido em Florença durante o domínio da família Medici (século 15), que para lá atraíra hordas de poetas, pintores, cientistas, filósofos etc.
Ora, esse mesmo acontecimento, o surto criativo, pode ser explicado como simples conseqüência de concentrações diversas de talentos nas respectivas especializações, podendo ser atribuída, portanto, ao princípio da "massa crítica". A idéia de que multidisciplinaridade é fértil "per se" já criou, no Brasil inclusive, domínios povoados por medíocres e picaretas acadêmicos de toda sorte.
Mas eis que um novo preceito, igualmente insólito, ameaça invadir e dominar o cenário científico e tecnológico brasileiro. Comecemos com um exemplo. Há cerca de dois anos, a Petrobras lançou um programa pelo qual distribuiu recursos a cerca de 500 grupos isolados de pesquisadores distribuídos em pouco mais que uma centena de "redes". O resultado foi obviamente pífio.
Tivesse a Petrobras concentrado em dois ou três centros de pesquisa esses recursos, teria certamente havido conseqüências importantes para o progresso da ciência e da tecnologia no Brasil. Então, por que essa dispersão inócua de recursos? De fato, essa opção responde, embora equivocadamente, a um dogma central do socialismo, o "distributivismo". A Petrobras, aparentemente, já estaria corrigindo o modelo.
A aparência é a de que as redes de pesquisa são uma solução democrática em que todos são beneficiados igualitariamente. Mas não estaria o bem da sociedade, só alcançado com a eficiente produção de conhecimento, acima dos interesses pessoais de um punhado de cidadãos, os cientistas? Os argumentos aqui apresentados acabam de ser confirmados em um extenso e detalhado estudo de 20 milhões de artigos científicos e 2 milhões de patentes por um período de cinco anos em que se avaliou a contribuição de grupos de pesquisadores em comparação com a de indivíduos. A conclusão inelutável é que, qualquer que seja o campo do conhecimento, qualquer que seja o tipo de atividade considerada, a contribuição de um indivíduo é sempre muito maior quando trabalhando em grandes agrupamentos. As redes de pequenos grupos e pesquisadores individuais podem ser úteis em certas circunstâncias, principalmente em uma função acessória, complementar, mas seria um erro crasso supor que podem dispensar instituições de pesquisas de grande porte atuando com objetivos precisos.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 77, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), presidente do Conselho de Administração da ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron) e membro do Conselho Editorial da Folha.



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