São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Diálogo com Paul Kennedy

JOSÉ MAURICIO BUSTANI


Não podemos admitir atropelos das potências que deslegitimem os interesses coletivos em nome de interesses individuais


PAUL KENNEDY , autor de "Ascensão e Queda das Grandes Potências", tem-se debruçado sobre os desafios das Nações Unidas no mundo atual. Em "The Parliament of Man: the United Nations and the Quest for World Government", retraça o surgimento das organizações multilaterais, resultado da disposição dos Estados de flexibilizar sua soberania em nome de interesses comuns a todos. Fulcral é sua análise da tensão intrínseca, no sistema da ONU, entre os interesses egoístas das grandes potências e os interesses comuns da comunidade internacional.
Em recente artigo, publicado no jornal "The Guardian", Kennedy examinou a problemática do Conselho de Segurança da ONU (CS). Causa perplexidade, 60 anos depois de ter sido criado para "poupar as gerações futuras do horror da guerra", que o órgão não se mostre apto a cumprir seu mandato de forma ágil e eficaz.
Kennedy explica que o CS foi criado a partir de exigências das grandes potências. Prevaleceu a noção de que o mundo estaria dividido entre Estados "consumidores de segurança" e "provedores de segurança". Daí a distinção, na composição do CS, entre membros não-permanentes e membros permanentes. Buscou-se, ainda, assegurar a adesão das grandes potências à ONU, para não se repetir a malograda experiência da Liga das Nações. Daí o instituto do veto, a garantir aos cinco membros permanentes que seus interesses nacionais jamais viessem a ser preteridos. Conquanto fizessem sentido quando da criação das Nações Unidas, esses "truques" hoje criam desequilíbrio e injustiça. O mérito da análise de Kennedy é mostrar por que o CS requer reformas imperativas, sem as quais continuará a "tropeçar" entre as expectativas da opinião pública internacional e o peso desproporcional de grandes potências e, assim, a perder legitimidade e respeitabilidade.
Idealmente, seria preciso democratizar plenamente o órgão: abolir a discriminação entre membros e revogar o direito ao veto. Quaisquer reformas correm, porém, o risco de serem frustradas pelos próprios vícios que pretendem corrigir. Por isso, Kennedy recomenda que as reformas não percam o sentido da realidade: por mais decepcionante que seja, um CS tal como existe hoje seria preferível a uma situação em que as grandes potências debandassem para fora dele.
A análise de Paul Kennedy suscita três ordens de reflexões sobre a candidatura do Brasil a membro permanente do Conselho de Segurança.
A primeira diz respeito ao reconhecimento externo, por um analista tão respeitado, das credenciais do Brasil. "Por qualquer critério objetivo, (...) também o Brasil (...) deveria ter seu lugar à grande mesa", professou.
O reconhecimento de nossas credenciais parece, curiosamente, ser mais claro no exterior que no Brasil. Por seu tamanho, população, PIB, política externa e influência nos grandes temas globais, o país tem todas as condições de contribuir para o reforço da representatividade e legitimidade de que o CS tanto precisa.
A segunda observação é sobre o realismo que orienta nossa política externa. O Brasil não está travando uma batalha diplomática pretensiosa. Não escondemos críticas ao veto, mas estamos cientes de que seria inútil querer corrigir todos os vícios do CS. Com nossos parceiros do G4 (Alemanha, Índia e Japão), queremos desconcentrar o poder por meio da incorporação de novas potências regionais em caráter permanente, sem insistir, neste momento, no direito ao veto.
A terceira observação recai sobre nossa responsabilidade no mundo. Nossa aspiração não é projeto de prestígio. A postulação de um país como o Brasil deve ser vista no quadro de uma contribuição imperativa para a manutenção de instituições internacionais legítimas e eficazes.
Abster-nos de defender a reforma do CS seria como lavar as mãos para as inaceitáveis falhas do sistema de paz e segurança internacionais.
Ao Brasil não interessa a repetição de ocorrências como a demora do CS em agir em crises internacionais chocantes e que nos tocam de tão perto, como a crise no Líbano. E, como nos episódios de meu afastamento da diretoria-geral da OPAQ, em 2002, e da invasão do Iraque, em 2003, ficou claro que tampouco podemos admitir atropelos de grandes potências que deslegitimem os interesses coletivos em nome de seus interesses individuais, travestidos de pretextos nobres (afinal, onde estão as armas químicas iraquianas?). É preciso insistir.

JOSÉ MAURICIO BUSTANI , 61, diplomata, é o embaixador do Brasil em Londres. Foi diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas de 1997 a 2002.


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