São Paulo, segunda-feira, 15 de outubro de 2007

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Drummond e a vaca

SÃO PAULO - "É o Niemeyer, Oscar Niemeyer -você nunca ouviu falar?" A moça tentava explicar para a amiga quem era aquele senhor circunspecto sentado no banco da praia, de costas para o mar. Estavam as duas, muito extrovertidas, de biquíni, perto do Posto 6, em Copacabana, ao lado da estátua de Carlos Drummond de Andrade (1902-87). Ele vive ali desde 2002, homenagem a seu centenário.
Flagrei o diálogo das "raparigas em flor" anteontem, quando ia distraído pela manhã ensolarada e dei de cara com a imagem do maior poeta brasileiro -há ainda quem discuta. Ali fiquei por meia hora, talvez mais, observando.
As pessoas se aproximam da figura de bronze e aspecto contido com um misto de solenidade e irreverência. Muitas se sentam no banco, tocam, abraçam e há até quem troque uma idéia com Drummond.
O pai repreende o filho pequeno que faz chifrinho sobre a cabeça do poeta. "É falta de respeito", ensina. Com a dignidade do instante restaurada, eterniza no celular a cena da família reunida.
Molhados do mar, dois garotos mulatos -10, 12 anos- se aproximam, um deles com a bola na mão. "Andrade -ele é meu parente!". E o outro: "Que parente nada, Mané!". Até Drummond parece sorrir.
Desde o início do mês, sua imagem pensativa tem a companhia de uma imensa vaca de bronze, que lê um livro sentada a seu lado. Faz parte da CowParade. "Onde já se viu, uma vaca com o Drummond!?", reclama, indignado, um caminhante. O senhor ao lado me cutuca, à procura de um cúmplice: "Esse aí não entendeu o espírito da coisa".
Também não sei se entendi, mas saí dali comovido, com a sensação de que naquela cena tão brasileira se misturavam, em estranha comunhão, um país pós-moderno e um país pré-moderno. É como se Drummond, o tradutor da nossa modernidade sempre adiada e frustrada, voltasse a dizer: "Cansei de ser moderno; agora serei eterno".
Sob a estátua, pude ler o verso gravado no banco de pedra: "No mar estava escrita uma cidade".


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