|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Drummond e a vaca
SÃO PAULO - "É o Niemeyer, Oscar Niemeyer -você nunca ouviu
falar?" A moça tentava explicar para a amiga quem era aquele senhor
circunspecto sentado no banco da
praia, de costas para o mar. Estavam as duas, muito extrovertidas,
de biquíni, perto do Posto 6, em Copacabana, ao lado da estátua de
Carlos Drummond de Andrade
(1902-87). Ele vive ali desde 2002,
homenagem a seu centenário.
Flagrei o diálogo das "raparigas
em flor" anteontem, quando ia distraído pela manhã ensolarada e dei
de cara com a imagem do maior
poeta brasileiro -há ainda quem
discuta. Ali fiquei por meia hora,
talvez mais, observando.
As pessoas se aproximam da figura de bronze e aspecto contido com
um misto de solenidade e irreverência. Muitas se sentam no banco,
tocam, abraçam e há até quem troque uma idéia com Drummond.
O pai repreende o filho pequeno
que faz chifrinho sobre a cabeça do
poeta. "É falta de respeito", ensina.
Com a dignidade do instante restaurada, eterniza no celular a cena
da família reunida.
Molhados do mar, dois garotos
mulatos -10, 12 anos- se aproximam, um deles com a bola na mão.
"Andrade -ele é meu parente!". E o
outro: "Que parente nada, Mané!".
Até Drummond parece sorrir.
Desde o início do mês, sua imagem pensativa tem a companhia de
uma imensa vaca de bronze, que lê
um livro sentada a seu lado. Faz
parte da CowParade. "Onde já se
viu, uma vaca com o Drummond!?",
reclama, indignado, um caminhante. O senhor ao lado me cutuca, à
procura de um cúmplice: "Esse aí
não entendeu o espírito da coisa".
Também não sei se entendi, mas
saí dali comovido, com a sensação
de que naquela cena tão brasileira
se misturavam, em estranha comunhão, um país pós-moderno e um
país pré-moderno. É como se
Drummond, o tradutor da nossa
modernidade sempre adiada e frustrada, voltasse a dizer: "Cansei de
ser moderno; agora serei eterno".
Sob a estátua, pude ler o verso
gravado no banco de pedra: "No
mar estava escrita uma cidade".
Texto Anterior: Editoriais: Sem defesa Próximo Texto: Brasília - Valdo Cruz: Bendita maldição Índice
|