São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

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JOSÉ SERRA

Os milagres da comunicação

O maior sucesso do governo Lula tem sido o fato de que, depois da eleição, não fez o que se esperava que fizesse. As elites acolheram com muita simpatia que o PT deixasse de lado, sem cerimônia, sua história e seu programa populista. Lembro-me, a propósito, o que ouvi num jantar em Princeton do presidente do Conselho de Administração do "Wall Street Journal": enorme entusiasmo pela amizade que o novo governo brasileiro demonstrava em relação ao "mercado" e elogios ao programa Fome Zero, considerado um exemplo para o Terceiro Mundo.
A menção a esses elogios conduz a outro sucesso do governo do PT: a publicidade. O melhor exemplo é o próprio Fome Zero. Agora mesmo, uma dezena de grandes empresas privadas patrocinaram com entusiasmo a comemoração do aniversário do programa, e o presidente Lula revelou, na oportunidade, ter realizado um milagre ao lançá-lo.
Um milagre de comunicação, sem dúvida, pois o Fome Zero não existe na prática. Mesmo no papel já mudou várias vezes e ninguém sabe bem o que é. Em essência, não passa de uma retranca publicitária que agrupa cerca de 26 programas sociais, a maioria vindos do governo Fernando Henrique. Segundo o momento, o governo pode citar até a velha merenda escolar e o registro civil gratuito.
Outro sucesso publicitário tem sido o Bolsa-Família, que, em sua maior parte, agrega os programas de transferência de renda herdados do governo passado. A idéia de unificar esses programas já estava começando a ser trabalhada em 2001/02 e, segundo o próprio Lula, foi a ele sugerida pelo governador Marconi Perillo, de Goiás e do PSDB. Mas não foram acrescentados recursos adicionais.
Quando fiz essa afirmação aqui na Folha, o governo contestou no "Painel do Leitor", dizendo que os recursos haviam aumentado 65% no ano passado. Rebati essa contestação com números oficiais, mostrando que as transferências de renda às famílias pobres diminuíram em termos reais em 2003. A partir daí o governo silenciou, talvez porque no seu mundo publicitário importe muito menos a realidade do que a imagem, o discurso emotivo, a comunicação engenhosa.
Outros programas vitais para o combate à pobreza e a promoção social, como o Programa de Apoio à Agricultura Familiar, o Reforsus (obras na saúde) e o Seguro Safra tiveram, até novembro de 2003, uma execução entre 7% e 30% da previsão orçamentária. Nesse mesmo ano, o governo começou a desativar o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), gastando bem menos do que estava previsto no Orçamento.
Há tempos o PSDB vem denunciando a tendência de liquidar o Peti. Diante de matéria publicada pela Folha na semana passada, mostrando a redução do orçamento do Peti de R$ 507 milhões para R$ 100 milhões, entre 2003 e 2004, o governo ensaiou um recuo e anunciou que R$ 297 milhões pertencentes a esse programa e que estão no Bolsa-Família serão devolvidos. Ou seja, ou iam ser desviados para outra coisa ou estavam inflando, com fins publicitários, as verbas do Bolsa-Família. E o resto da diferença (R$ 110 milhões) o governo prometeu cobrir.
Aguardamos, então, o projeto de lei ao Congresso, com urgência, pedindo autorização para as mudanças e detalhando as despesas que, em troca, serão canceladas. Sem esquecer de explicar, na exposição de motivos, tanto o corte de 80% como a volta da volta atrás. Recursos de comunicação para esses esclarecimentos é que não faltam ao governo do PT.


José Serra escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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