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DEMÉTRIO MAGNOLI
Gangues do Haiti
Walt Bogdanovich e Jenny
Nordberg, numa longa reportagem publicada no "New York Times"
e amparada na narrativa de Brian
Curran, embaixador americano no
Haiti até agosto de 2003, desvendaram
a articulação oculta que culminou na
derrubada do ex-presidente haitiano
Jean Bertrand Aristide, em fevereiro
de 2004. Essa articulação, conduzida
por Otto Reich e Roger Noriega, os encarregados de América Latina no Departamento de Estado, configurou um
canal diplomático clandestino, divergente da linha oficial, mas obediente à
vontade dos neoconservadores e da
Casa Branca. Desde a posse de George
Bush, o canal clandestino financiou a
oposição política a Aristide, organizou
o grupo de criminosos que promoveriam o levante armado e estabeleceu
os contatos entre ambos os núcleos do
golpe de Estado.
No fim, como se sabe, agentes americanos e franceses obrigaram o presidente legal do Haiti a assinar uma carta de renúncia e o conduziram à força
para a aeronave que decolou com destino ao exílio. Os países do Caricom
(Comunidade do Caribe) denunciaram o golpe e não reconheceram o governo provisório, formado sob supervisão direta de Noriega. Mas um acordo entre EUA e França conseguiu a
aprovação do Conselho de Segurança
(CS) da ONU ao golpe. O Brasil usou
essa resolução do CS como pretexto
para, aceitando solicitação de Bush,
assumir o comando das forças da
ONU no Haiti.
Dois anos depois, debaixo dos olhares das forças da ONU, os haitianos foram às urnas. Eles não puderam votar
livremente, pois Aristide, exilado na
África do Sul, não teve a oportunidade
de se apresentar como candidato.
Mesmo assim, votaram em massa em
René Préval, ex-presidente e antigo
aliado político de Aristide. Leslie Manigat e Charles Baker, os preferidos do
governo provisório e de Washington,
sofreram fragorosa derrota. A torrente de votos em Préval, oriunda das
principais cidades e das favelas de
Porto Príncipe, é uma mensagem inequívoca: os haitianos repudiaram o
golpe de Estado. Eles procuram restaurar os fiapos de legalidade e democracia que existiram no Haiti.
Talvez consigam, talvez não. Há indícios de fraude na apuração dos votos. Nos primeiros dias da apuração,
Préval tinha folgada maioria absoluta,
o que evitaria a realização de um segundo turno. Essa maioria declinou
aos poucos até que, no sábado à noite,
regrediu num salto para pouco menos
de 50%. No momento exato do estranho salto, o Conselho Eleitoral (CEP)
suspendeu a divulgação dos resultados departamentais, fornecendo apenas os totais nacionais. O boletim eleitoral suspeito também anunciou a
anulação, por supostas irregularidades, de cruciais 125 mil votos.
Um membro independente do CEP
denunciou manipulação dos resultados. Milhares de haitianos tomaram
as ruas em protesto. As forças da ONU
atiraram para o ar, na versão oficial.
Um manifestante morreu baleado. O
ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, pediu respeito às "leis" e
às decisões do CEP. As eleições no
Haiti assemelham-se, cada vez mais, a
uma guerra entre o governo provisório e a maioria dos haitianos.
Amorim e Ricardo Seitenfus, seu assessor para o Haiti, repetem incansavelmente que a pequena nação caribenha precisa de ajuda financeira internacional. Os haitianos estão dizendo
que não querem só comida, mas, antes de tudo, democracia.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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