São Paulo, sábado, 16 de fevereiro de 2008

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VERA GUIMARÃES MARTINS

Gugu, dadá

HOUVE UM tempo em que governo e oposição eram cerveja e vinho, dois sabores inconfundíveis, cada qual com seus adeptos. Era um mundo mais simples, como são simples os cenários sem muitos matizes. O maniqueísmo era impositivo; em tempos negros é preciso ter lado, dizia-se. Mesmo entre os bebedores de cerveja, ser ou não ser era a questão; você era Brahma ou Antarctica. Um dia o preto e branco acabou, houve festa cívica no reino, aleluias, felicidade. Daqui para a frente, tudo ia ser diferente.
Até que foi. No começo a velha dicotomia ainda podia encontrar alguma ressonância, havia espaço para crenças de que "este governo", os primeiros, "não era bem o que a gente queria, mas no próximo com certeza...". Aí veio a "fusion cuisine", misturando hemisférios e quadrantes, juntando jabuticaba e petit gâteau. Veio a Ambev, embatucando quem sempre acreditou que Brahma e Antarctica eram mundos incompatíveis. E vieram o PSDB e o PT, farinhas moídas no mesmo moinho, mas acomodadas em sacos distintos, já que um só era insuficiente para todo mundo. Oba!, enfim, a maturidade, o muro caiu (até Carolina viu), e o último baluarte da esquerda chegou ao governo. Os sonhadores incorrigíveis apostaram que agora o debate iria ser mais rico, sem cores primárias e mistificações simplificadoras. Dançaram, estamos dançando.
Muita coisa mudou, mas o debate honesto e despido de vícios ideológicos, vital para o país e até então relegado sob o argumento (questionável) de não reforçar o inimigo comum, virou suco. Ao contrário, ressuscitou-se o maniqueísmo simplório, e interditou-se o debate. Não há espaço para crítica e discordância, ou você está comigo ou é um vendido. A política, cada vez mais irrelevante, instaurou de vez a lei do "não me entregue ou eu te deduro". A intelligentsia se engalfinha em discussões ruidosas, de muito calor e nenhuma luz, voam insultos e acusações.
A imprensa, culpada eterna, não podia ficar de fora. Lembra da isenção, aquela utopia cultivada com carinho? Virou refém da lei do "uma no cravo, outra na ferradura", ao custo de muitas vezes ter de ignorar os critérios de hierarquizar a notícia pela sua importância. Exige-se a democracia caolha, que trata como igual o que é diferente, como revelam painéis de leitor, blogs políticos e caixas de mensagens.
O povo, a moçada mais ainda, esse caiu na real e foi cuidar da vida.

 

PS: Este texto já estava engatilhado antes da publicação das colunas de ontem de Clóvis Rossi e Nelson Motta, que tratam de assuntos diferentes, mas navegam na mesma maré de mal-estar. Talvez seja coletivo. Talvez seja bom sinal. Talvez seja só outra ilusão de que podemos virar adultos.

VERA GUIMARÃES MARTINS é editora de Publicações Especiais da Folha.


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