São Paulo, segunda-feira, 16 de abril de 2007

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Cultura ou interesses privados

LISBETH REBOLLO GONÇALVES


A formação social que se constrói no museu contribui para promover uma inserção diferenciada no processo de socialização


NA GEOPOLÍTICA dos múltiplos territórios culturais da sociedade, a idéia de "res publica" configura-se plenamente no espaço dos museus, quando se toma em conta que o museu é um lugar de experiência para as subjetividades sociais, lugar de construção da memória, de troca comunitária, onde se preserva o patrimônio para a educação da coletividade.
O museu é "res publica" como lugar de encontro com a história social e com a cultura. Ser "res publica" implica uma idéia inclusiva: a de ser para "muitas pessoas" e a de ser administrada por um conjunto de profissionais, com responsabilidade pública, democraticamente, mediante a deliberação de métodos e práticas objetivas, voltadas ao benefício coletivo e para seu usufruto.
O Conselho Internacional de Museus estabeleceu, em 1972, uma definição que até hoje se aplica universalmente: museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos -a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e aberto ao público- que adquire, conserva, pesquisa e exibe para finalidades de estudo, de educação e de apreciação, a evidência material dos povos e seu ambiente.
Presentemente, no cenário paulista e brasileiro, os museus vêm ganhando visibilidade e defesa pública. Isso se dá pela procura de novos rumos no campo da política cultural e por um maior reconhecimento da importância dos museus para o uso social de patrimônios relevantes.
Apesar disso, as instituições ainda sofrem com a falta de legislação governamental voltada à aquisição de acervos e não contam com prioridade legal para competir na compra de obras ou coleções de importância na história da arte no país.
Na complexidade dos tempos atuais, permeada por atos de violência e perda de valores, a formação social que se constrói no espaço do museu contribui para promover uma inserção diferenciada no processo de socialização. Nesse contexto, o museu pode até ser visto como um reduto de resistência para a construção ética, a reificação das identidades subjetivas.
O museu e seu patrimônio são referências culturais coletivas onde, partilhando memórias, o cidadão tem a possibilidade de assumir uma relação privilegiada com o tempo presente.
Assim, o museu pode ser uma "aposta" social de integração comunitária -um lugar de experiência cognitiva e de reencantamento da vida, nova cenografia para a sociabilidade, que se processa por via de práticas simbólicas afetivas e integradoras.
O Museu de Arte Contemporânea, assim como outros museus da Universidade de São Paulo, recebeu por via de decisão judicial a guarda de parte do acervo do antigo Banco Santos e outros segmentos desse conglomerado, cuja falência foi decretada. A iminência do julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça quanto aos bens que pertenceram ao antigo banqueiro permanecerem com a União ou serem entregues à massa falida do banco põe em risco a dimensão pública desse acervo de obras de arte.
Só a parte que está sob a guarda do Museu de Arte Contemporânea da USP constitui um conjunto de 1.561 obras, sendo 1.347 fotografias. Desde que recebeu o conjunto de obras, no final de 2005, o MAC o submeteu a um tratamento museológico adequado, procedendo a identificação, peritagem, catalogação, análise, laudo técnico e armazenamento das obras.
Trabalhos que só foram possíveis com um grande investimento institucional envolvendo a equipe especializada e recursos do próprio museu.
O museu já iniciou pesquisa específica sobre a coleção recebida, projetando uma série de cinco exposições que resgatam um panorama nacional e internacional da fotografia, do final do século 19 até a atualidade.
A primeira mostra do ciclo está agendada para o segundo semestre deste ano, enquanto outras obras do acervo do ex-banqueiro já estão em exibição pública e podem ser vistas gratuitamente nas exposições em cartaz em nossas sedes na Cidade Universitária e no parque Ibirapuera.
O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (uma universidade pública) tem primado pela guarda criteriosa, pesquisa e exibição sistemática de seu acervo e das obras que possui em sistema de comodato. Não só o museu e a universidade, com seu trabalho de ensino, pesquisa e extensão cultural, mas a sociedade e a cultura brasileira perderão um patrimônio precioso, se a decisão judicial privilegiar, em vez da "res publica", os interesses privados.

LISBETH REBOLLO GONÇALVES é professora titular e diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP).

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