|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CLÓVIS ROSSI
A praça não é nossa
ESTRASBURGO - É noite de domingo
em Estrasburgo. Quer dizer, deveria
ser noite, porque o sino da fenomenal
catedral gótica da cidade já faz algum tempinho que tocou as oito horas. Mas ainda está claro, muito claro, o céu é límpido, e a place Kléber, a
principal de Estrasburgo, está cheia
de gente sentada às mesinhas de calçada. Esclareça-se que toda a praça é
um calçadão.
No hotel, zapeio pelos canais internacionais. A CNN mostra São Paulo
transformada em Bagdá (menos destruída fisicamente, mas, ao fim e ao
cabo, Bagdá pela quantidade de
atentados praticados contra forças
policiais). Mudo para a TV alemã.
Não entendo nada, mas é de novo a
São Paulo/Bagdá.
Na TV francesa, na TV italiana, na
espanhola, na BBC, idem. Só não
conferi a Al Jazeera, porque aí seria
uma ironia mortal.
Volto à place Kléber com uma
imensa sensação de derrota.
Sinto-me agredido pela placidez
dos comensais da praça. Começo a
torcer para que um PCC local faça
um arrastão, assalte todos eles, leve
embora as bicicletas, até elas agressivas pelo silêncio ensurdecedor na
comparação com o ruído infernal dos
carros "lá bas".
Nada disso acontece. No máximo,
dois adolescentes, cheios de piercings,
de garrafa na mão, passam falando
alto. Eu me assusto de todo modo,
mas os locais não dão a menor bola.
Nem lhes passa pela cabeça que possam ser algo mais que bêbados.
Não aparece nem mesmo um pedinte, um menino triste e pobre para
dizer: "Oncle, me dá algum aí". Ou
uma senhora de olhos amargurados
pela dureza da vida vendendo flores
para sustentar os filhos. Nada.
O sino da catedral dá as nove horas,
o som parece reverberar até o fim do
mundo, até o fim dos tempos, mas a
noite ainda demora meia hora para
chegar. As gentes de Estrasburgo continuam a passear até pelas ruazinhas
estreitas que, em São Paulo, seriam
sinônimo de emboscada.
Por que eles têm direito à sua praça
e eu, você, nós, não?
@ - crossi@uol.com.br
Texto Anterior: Editoriais: NAÇÃO SEM SIGILO Próximo Texto: Brasília - Valdo Cruz: A vida ou o voto Índice
|