São Paulo, sábado, 16 de julho de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

No combate ao terrorismo, liberdades individuais podem sofrer restrições?

SIM

Pela democracia e pelo Estado de Direito

ALEXANDRE DE MORAES

A restrição às liberdades individuais, como regra, não deve ser admitida nem tolerada, mas sim combatida por todos aqueles que acreditam na democracia. A história, porém, exigiu a adaptação e aplicação de normas constitucionais para situações emergenciais, bem como a inserção de normas nas mais modernas constituições (Brasil, Argentina, Itália, França, Portugal e Espanha), com a previsão de instrumentos excepcionais que permitem essa restrição em casos extremos -como as guerras externas ou civis e a grave desordem interna (terrorismo, por exemplo)-, desde que a legislação ordinária se mostre insuficiente para assegurar a normalidade institucional. Além disso, é preciso que as medidas de exceção sejam razoáveis e limitem-se ao local e aos fatos necessários para a resolução dos conflitos e tenham por finalidade afastar a ameaça concreta e grave à ordem democrática e ao Estado de Direito.
Essa adaptação consistiu em importante garantia da manutenção do equilíbrio das instituições e da permanência da democracia. Mesmo em momentos de grande anormalidade, substituiu a antiga concentração de poder em uma única pessoa (ditaduras constitucionais romanas), que poderia exercê-lo sem fiscalização nem responsabilidade, pela necessidade da aprovação dessas medidas excepcionais pelo corpo legislativo eleito pelo povo (manutenção da democracia) e sob fiscalização do Poder Judiciário (manutenção do Estado de Direito). Como salientado por Cícero, "é preferível um remédio que cure as partes defeituosas da democracia a um que a ampute".
A "stewardship theory", de Theodore Roosevelt, que permitia o exercício de poderes presidenciais excepcionais em caso de grave crise, desde que não houvesse expressa vedação constitucional ou legal, ou seja, sem controle do Congresso Nacional ou do Poder Judiciário, foi sendo paulatinamente afastada -como verificamos na Guerra Civil (1861-1865), quando a Corte Suprema negou ao presidente o poder de limitar a liberdade das pessoas sem que houvesse lei expressa permitindo, ou, ainda, quando a corte invalidou a assunção do controle de industria de aço por Truman (Guerra da Coréia), sob a alegação de segurança nacional.
Ou seja, mesmo a edição de medidas excepcionais para o combate às mais graves situações de anormalidade institucional devem respeito às normas democráticas (consulta ao Legislativo) e ao Estado de Direito (respeito à Constituição e acesso ao Judiciário), buscando a preservação dos direitos fundamentais postos em perigo por atitudes cruéis e inesperadas, perpetradas por covardes atos de terrorismo.
A simples existência de ato normativo, porém, não se afigura suficiente para legitimar a intervenção no âmbito das liberdades individuais, fazendo-se mister, ainda, que as restrições sejam proporcionais e razoáveis, isto é, que sejam adequadas e justificadas pela absoluta necessidade do interesse social.
Esse é o posicionamento da ONU (art. 29), ao afirmar que nenhuma liberdade individual prevista em sua declaração poderá ser interpretada no sentido de conferir a Estados, grupos ou pessoa a possibilidade de empreender atividades tendentes ao desrespeito ou supressão dos direitos fundamentais da coletividade, como ocorre nos insanos atos terroristas. Ou, ainda, a previsão do Pacto de San José (art. 27), que admite a possibilidade de suspensão de garantias individuais em caso de guerra, de perigo público ou de outra emergência que ameace a independência ou a segurança do próprio Estado.
A restrição é ato anormal, que demonstra a situação crítica em que se acha a sociedade e a necessidade de meios incomuns, porém institucionais, para o retorno à normalidade, sendo circunscrita aos princípios da necessidade e da temporariedade.
Mas falar em restrição não significa falar em extinção, não é eliminação, não é abuso ou arbitrariedade, sendo absolutamente vedada a supressão de todos os direitos individuais, sob pena de tirania ou anarquia, pois não há como suprimir, em hipótese alguma, o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à liberdade de consciência e religião, à honra, ao acesso ao Judiciário, entre outros, pois, na lição de Rui Barbosa, esse regime é extraordinário, porém não arbitrário, é de exceção, "mas de exceção circunscrita pelo direito constitucional, submetida à vigilância das autoridades constitucionais".
A restrição excepcional de liberdades individuais exige indiscutível gravidade das situações emergenciais de crise, como no caso em questão, consistente no necessário e concreto combate à prática de brutais atos de terrorismo, e terá como única finalidade a superação da crise e o retorno ao status quo ante. Jamais o intuito de discriminação fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social.


Alexandre de Moraes, 36, professor doutor e livre-docente da USP, leciona direito constitucional, direitos fundamentais e liberdades públicas. É membro do Conselho Nacional de Justiça e autor, entre outras obras, de "Direitos Humanos Fundamentais". Foi secretário de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo (2002-2005).


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