São Paulo, quarta-feira, 16 de julho de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A lei espantalho

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI


Uma lei seca espetacular cai como uma luva nesse processo de transformação da lei em espetáculo que está ocorrendo no país

DEPOIS DA vigência da lei seca, caiu mais da metade o número de acidentes com veículos motorizados. Os defensores da abstinência comemoram e enaltecem o rigor da lei. Mas um minuto de reflexão bastaria para duvidar dessa relação causal entre a lei e a redução dos acidentes. O bom êxito não resulta sobretudo da repressão policial que pela primeira vez se organiza como tal?
Cabe lembrar que a cidade de São Paulo possuía por volta de 30 bafômetros, quantidade absolutamente ridícula. Em vez de o Estado ser aparelhado, e a população, educada, simplesmente se promulga uma lei que pode funcionar como espantalho e forçar uma mudança cultural mediante malabarismos do legislador.
Mais do que a impossibilidade de tomar dois copos de vinho no jantar e voltar dirigindo para casa, incomoda-me essa pretensão autoritária de mudanças culturais serem obtidas a golpes da legislação. Numa democracia, o legislador pode conformar modos de conduta existentes, mas não lhe cabe inventar uma cultura, em particular uma cultura da abstinência e da repressão desnecessária.
O que se deve punir é o motorista embriagado. Ora, diante da dificuldade de estabelecer o limite entre o motorista normal e o embriagado, já que as pessoas reagem diferentemente à mesma quantidade de álcool ingerido, o legislador simplesmente se ausenta, define um limiar que, na prática, impede a bebida e arma o espetáculo da repressão.
Assim, abre-se o caminho para policiais agirem de modo prepotente e abstêmios puritanos darem margem a seus ressentimentos. A vitória é o fim da festa. Isso se os jovens, a população alvo da lei, não aumentarem o consumo de outras drogas mais nocivas à saúde do que o álcool. Em vez de impor a abstinência, cabe definir o limiar da tolerância. Se outros países adotam com sucesso limiares mais altos, por que o nosso deve levantar a bandeira da pura repressão?
Uma lei seca espetacular cai como uma luva nesse processo de transformação da lei em espetáculo que está ocorrendo no país. Em vez de combater a impunidade apertando a legislação e aparelhando o Estado, a fim de que ele possa reprimir respeitando os direitos humanos, vem sendo armada, em praça pública, a guilhotina da respeitabilidade, a humilhação do investigado.
Essa brincadeira de mau gosto de prender e soltar "celebridades" do mundo financeiro e político desmoraliza tanto o prendedor como o relaxador. Se devemos aplaudir o bom trabalho da Polícia Federal quando investiga crimes de colarinho-branco, não é por isso que devemos tolerar que suas ações se façam à luz dos holofotes. Se devemos esperar dos magistrados que cumpram a lei, não é por isso que vamos nos deliciar com as piruetas dos juízes de primeira ou de última instância.
O que está sendo posto em xeque é respeitabilidade institucional da lei. Interessa ao governo fazer de conta que nunca neste Brasil os corruptos foram tão perseguidos. Interessa à oposição, incapaz de elaborar uma agenda oposicionista, que se tenha a ilusão de que tudo, no final das contas, está conforme à lei. Ambos os lados estão contentes porque nenhum de seus corruptos será pego, a despeito de serem expostos no pelourinho da opinião pública. E que não se meça a impunidade pelo número de processos que resultam em condenação nas instâncias superiores da Justiça, pois ela se abriga antes e depois desse tipo de condenação.
Disso tudo resulta o afrouxamento do poder normativo da lei positiva. Primeiro, cada um a considera valendo mais para os outros que para si próprio. Segundo, seus limites estão sempre em mudança, como as margens arenosas dos rios. Por fim, mais que a lei, importa a celebração da "celebridade", tornar visível a qualquer custo um personagem posando de banqueiro acuado, de policial eficaz, de político injustiçado e até mesmo de legislador incompreendido.
Em vez de a norma regular, amoldar a conduta para que ela se torne coletivamente justa, cada vez mais ela tende a funcionar como espantalho fingindo que afugenta as aves da transgressão.


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI , filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor, entre outras obras, de "Certa Herança Marxista".

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