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ALCINO LEITE NETO
Azares de
um ministério
O Ministério da Cultura foi vítima de dois infortúnios ao divulgar seu projeto de regulação do mercado e produção de cinema no Brasil e
de criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual).
Primeiro, anunciou o projeto quase
ao mesmo tempo em que o governo
difundia outro plano: o de um indefensável Conselho Federal de Jornalismo. Segundo, não pôde evitar que o
projeto da Ancinav fosse imediatamente relacionado a um paper escrito
pelo secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, cujo nome
seria "Subdesenvolvimento e Cultura". O texto foi tomado como o fundamento ideológico do projeto de lei e
sobretudo do seu controverso artigo
43, segundo o qual competiria à Ancinav dispor sobre o conteúdo dos produtos audiovisuais.
O paper estaria circulando de maneira reservada no governo, mas um
outro texto do diplomata, de nome
parecido e com um conteúdo aparentemente igual, "Macunaíma: Subdesenvolvimento e Cultura", pode ser lido com toda a liberdade no site
www.desempregozero.org.br.
A reflexão de Pinheiro Guimarães
-que foi vice-presidente da Embrafilme na gestão Celso Amorim (1979-1982)- é ambiciosa e pretensiosa. Ele
deseja traçar um diagnóstico geral da
cultura brasileira a partir da idéia de
que nossas elites têm uma consciência
colonizada, buscando sempre implantar no país, de modo imitativo, os
modelos das Grandes Potências (em
maiúsculas no texto), sobretudo dos
Estados Unidos. Defende então que se
desenvolva dispositivos que possam
reduzir a "vulnerabilidade ideológica" do país à influência estrangeira e
que permitam ao Brasil criar uma
identidade cultural própria.
Por um instante pensamos que o diplomata e sua pena burocrática foram
tomados pelo espírito de Glauber Rocha, mas, quando nos deparamos
com as suas conclusões, verificamos
que, na verdade, ele encarnou Policarpo Quaresma. Algumas das idéias
pertinentes do texto são eclipsadas
por deduções excêntricas, como
achar que um maior tempo na escola
levaria os alunos a reduzirem seu interesse pela TV.
Mas não é o nacionalismo antiquado do paper, muito menos a sua análise esquemática com veleidades de interpretação do Brasil, que mais incomodam um leitor contemporâneo. É
a idéia de que somos por essência
uma sociedade subserviente e imatura, propensa à manipulação, que merece portanto ser tutelada pelo Estado. É também o sentimento um tanto
autoritário de que os meios audiovisuais e de comunicação, se deixados
ao deus-dará, só reproduzem a degradação cultural e o espírito colonizado.
Impressiona que tal raciocínio ainda
sobreviva no meio petista. Faz tempo
que o PT trocou seu trabalho de conscientização política dos cidadãos pelo
marketing eleitoral maciço.
Sobram boas intenções e falta dialética ao esquerdismo (tão anos 60) de
Pinheiro Guimarães. Ele presume que
a autonomia cultural se possa realizar
sem que tratemos de superar as relações estruturais de dependência econômica do país. O paper é um sintoma da esquizofrenia deste governo:
enquanto a Casa Civil e o Planejamento ficam insuflando regulações e
bolando batalhas contra a dominação
estrangeira, a Fazenda libera o mercado brasileiro para as excitantes aventuras do capital financeiro transnacional.
Todos sabemos que é preciso estabelecer critérios à exibição e à produção de cinema no Brasil -e o próprio
embaixador formula, por vezes, propostas objetivamente relevantes para
isso. Mas quem confiará agora num
projeto de lei que, a pretexto de nos livrar do "Homem Aranha", parece fazer parte de uma teia de surpresas retrógradas?
Alcino Leite Neto é editor de Domingo.
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