São Paulo, segunda-feira, 16 de agosto de 2004

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ALCINO LEITE NETO

Azares de um ministério

O Ministério da Cultura foi vítima de dois infortúnios ao divulgar seu projeto de regulação do mercado e produção de cinema no Brasil e de criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual).
Primeiro, anunciou o projeto quase ao mesmo tempo em que o governo difundia outro plano: o de um indefensável Conselho Federal de Jornalismo. Segundo, não pôde evitar que o projeto da Ancinav fosse imediatamente relacionado a um paper escrito pelo secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, cujo nome seria "Subdesenvolvimento e Cultura". O texto foi tomado como o fundamento ideológico do projeto de lei e sobretudo do seu controverso artigo 43, segundo o qual competiria à Ancinav dispor sobre o conteúdo dos produtos audiovisuais.
O paper estaria circulando de maneira reservada no governo, mas um outro texto do diplomata, de nome parecido e com um conteúdo aparentemente igual, "Macunaíma: Subdesenvolvimento e Cultura", pode ser lido com toda a liberdade no site www.desempregozero.org.br.
A reflexão de Pinheiro Guimarães -que foi vice-presidente da Embrafilme na gestão Celso Amorim (1979-1982)- é ambiciosa e pretensiosa. Ele deseja traçar um diagnóstico geral da cultura brasileira a partir da idéia de que nossas elites têm uma consciência colonizada, buscando sempre implantar no país, de modo imitativo, os modelos das Grandes Potências (em maiúsculas no texto), sobretudo dos Estados Unidos. Defende então que se desenvolva dispositivos que possam reduzir a "vulnerabilidade ideológica" do país à influência estrangeira e que permitam ao Brasil criar uma identidade cultural própria.
Por um instante pensamos que o diplomata e sua pena burocrática foram tomados pelo espírito de Glauber Rocha, mas, quando nos deparamos com as suas conclusões, verificamos que, na verdade, ele encarnou Policarpo Quaresma. Algumas das idéias pertinentes do texto são eclipsadas por deduções excêntricas, como achar que um maior tempo na escola levaria os alunos a reduzirem seu interesse pela TV.
Mas não é o nacionalismo antiquado do paper, muito menos a sua análise esquemática com veleidades de interpretação do Brasil, que mais incomodam um leitor contemporâneo. É a idéia de que somos por essência uma sociedade subserviente e imatura, propensa à manipulação, que merece portanto ser tutelada pelo Estado. É também o sentimento um tanto autoritário de que os meios audiovisuais e de comunicação, se deixados ao deus-dará, só reproduzem a degradação cultural e o espírito colonizado. Impressiona que tal raciocínio ainda sobreviva no meio petista. Faz tempo que o PT trocou seu trabalho de conscientização política dos cidadãos pelo marketing eleitoral maciço.
Sobram boas intenções e falta dialética ao esquerdismo (tão anos 60) de Pinheiro Guimarães. Ele presume que a autonomia cultural se possa realizar sem que tratemos de superar as relações estruturais de dependência econômica do país. O paper é um sintoma da esquizofrenia deste governo: enquanto a Casa Civil e o Planejamento ficam insuflando regulações e bolando batalhas contra a dominação estrangeira, a Fazenda libera o mercado brasileiro para as excitantes aventuras do capital financeiro transnacional.
Todos sabemos que é preciso estabelecer critérios à exibição e à produção de cinema no Brasil -e o próprio embaixador formula, por vezes, propostas objetivamente relevantes para isso. Mas quem confiará agora num projeto de lei que, a pretexto de nos livrar do "Homem Aranha", parece fazer parte de uma teia de surpresas retrógradas?


Alcino Leite Neto é editor de Domingo.



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