São Paulo, terça-feira, 16 de agosto de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Deve o presidente ser impedido?

Há dois preconceitos a afastar. O primeiro preconceito é que impedimento equivale a golpe. No presidencialismo, a perspectiva de derrotar o presidente em eleição subseqüente não basta para responsabilizá-lo. A faculdade de impedi-lo serve de contrapeso ao perigo que de ele abuse da oportunidade para favorecer os amigos, desfavorecer os adversários e confundir negócio com governo. Sem esse contrapeso, cai o regime em sorvedouro de negocismo e de intimidação. Inevitável que a oposição clame mais forte pelo uso do contrapeso. Impedimento presidencial, porém, não é plebiscito informal; é escudo da integridade do regime.
O segundo preconceito é que basta comprovar crime de responsabilidade do presidente para justificar seu impedimento. Não basta: o juízo também tem de ser de conveniência, mas num sentido que subordine as pequenas conveniências e que pense grande pelo país.
Ainda não são suficientes os elementos para concluir que o presidente haja incorrido em crimes de responsabilidade contra "o livre exercício do Poder Legislativo", "o exercício dos direitos políticos" (especialmente o direito de voto), "a probidade na administração" e "o cumprimento das leis". Falta pouco, porém, para que sejam suficientes. Há indícios fragmentários de que ele se envolveu, diretamente ou por meio de agentes, em tratativas com grandes interesses privados em troca de financiamentos políticos ilegais. E que radicalizou em entendimento bruto das regras do jogo, justamente quando a nação, nisso estimulada por sua pregação, começava a cobrar maior rigor ético de seus mandatários. Por isso, não vale a desculpa de que outros também fizeram.
Numa democracia mais enraizada do que a nossa, haveria razões para não reivindicar o impedimento, a começar pela proximidade das eleições de 2006. Entre nós, contudo, tais razões abrem espaço para o estadismo maroto que vê na manutenção do presidente o mal menor: por não se confiar no sucessor, ou por não se querer incomodar os "mercados", aliados, no incômodo, aos movimentos sociais aparelhados.
No Brasil de agora, duas conveniências republicanas sobrepõem-se a todas as conveniências politiqueiras: responsabilizar os políticos, afirmando o primado inflexível da lei (não conquistamos ainda o direito à flexibilidade confiável). E evitar que a sucessão presidencial degenere em luta sobre o passado, em vez de tornar-se luta sobre o futuro.
Confirmados os indícios de que o presidente haja cometido crimes de responsabilidade, deve o Congresso acelerar seu impedimento. Se o presidente e o vice-presidente forem impedidos juntos, deve o Congresso, expurgado dos que se alugaram ao governo, eleger novo presidente da República para completar o mandato, como manda a Constituição. O Congresso demonstrará sabedoria e grandeza se eleger, nesse caso, um cidadão fora de seus quadros: um jurista sereno, com autoridade moral e afinado com os compromissos em nome dos quais se elegera o presidente impedido -como o dr. Fábio Konder Comparato-, que presidirá, como magistrado, as eleições de 2006. Com isso, afastará o Congresso a sombra do golpismo e da usurpação. Em seguida, deve voltar-se a nação, sem medo e sem rancor, com o espírito inspirado pela reafirmação do ideário republicano, para a escolha de novo rumo e de novos líderes.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu


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