São Paulo, quinta-feira, 16 de agosto de 2007

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Quando os engraxates opinam

ROBERTO MUYLAERT

Claro que um jornalista não tem obrigação de conhecer todos os temas. O que se pede é que filtre notícias contraditórias, escandalosas

O JORNALISMO televisivo, quando envereda pelos acidentes de aviação, costuma produzir coberturas inadequadas, cheias de impropriedades, a partir de notícias apressadas e não apuradas. Claro que um jornalista da editoria geral não tem obrigação de conhecer todos os temas. O que se pede é que use o senso comum para filtrar notícias contraditórias, escandalosas ou sem sentido em benefício da sua audiência.
Embora a imprensa escrita também cometa abusos, a TV acaba por ter primazia no desserviço, não apenas por ser instantânea mas também porque repórteres e âncoras têm bastante tempo ao vivo para elaborar teses e conclusões duvidosas em cima das mesmas imagens e vinhetas repetidas "ad nauseam", transformando um único acidente em diversos.
E, para o grande público, que só ouve falar de avião quando estatelado no chão, trata-se de um aparelho fadado à tragédia.
É espantoso que, à semelhança das empresas aéreas, não haja um gabinete de crise em cada TV, cuja função seria prestar esclarecimentos as suas vítimas, no caso, os telespectadores: um grupo especializado em aviação, que saiba comentar esses temas sem falar bobagem e com compaixão por quem está sofrendo.
À falta dos especialistas, surgem as propostas da hora, vindas de leigos e autoridades que pretendem resolver os problemas -gerados por sucessivos governos- no tempo de uma entrevista na televisão.
Joe Kennedy sacou seus investimentos de Wall Street, pouco antes do crash de 1929, quando constatou que os engraxates estavam sugerindo a compra de determinadas ações.
No Brasil de hoje, os engraxates opinam sobre pinagem ou não de um reverso do A320.
As informações veiculadas sem preocupação ética geram um clima de terror na população, nas famílias das vítimas e nos próprios aeroviários, o que pode colocar em risco o promissor e necessário avanço da aviação comercial brasileira, em que a queda na venda de passagens aéreas parece ser da ordem de 30%. São centenas de milhares de passageiros que evaporaram, muitos em busca das rodovias. Decorrência, em parte, dessa demanda, cresceu o número dos acidentes rodoviários: no último mês, 686 pessoas morreram nas estradas federais, mais do que o triplo do número de vítimas de Congonhas.
Não houve escândalo, pois o sensacionalismo só se aplica ao setor aéreo: o editor não costuma se deslocar até o local do acidente rodoviário para contar o drama das famílias vitimadas. Desastres de veículos terrestres não dão Ibope.
Mas, em se tratando de espaço aéreo, até Suas Excelências, membros de uma açodada CPI do Congresso, escancaram o assunto ante as câmeras, chegando ao despudor de revelar o conteúdo das caixas-pretas à revelia dos especialistas -o que nem os engraxates que dissertam sobre pinagem fariam se fossem congressistas.
Uma menina de cinco anos, que ainda não sabe ler, mas conhece logotipos, fez um escândalo, prestes a entrar numa aeronave, ao vislumbrar bem de perto a marca de uma companhia: "Nessa não quero ir", choramingou para a mãe. Um impasse só contornado pelo atencioso comandante do avião, que a levou até a cabine antes da decolagem. Claro que a imprevidência das autoridades ao longo dos anos é a principal causa do chamado caos aéreo.
Mas uma cobertura televisiva responsável e não sensacionalista seria útil para esclarecer a população amedrontada numa hora tão difícil para quem vive em São Paulo -ou em Londres, a julgar por um texto da última "Economist", sob o título "Os Horríveis Aeroportos Britânicos".
Segundo a revista, o "Daily Telegraph" considerou a utilização do principal aeroporto da ilha "mais estressante do que ser atacado por um assaltante com uma faca na mão". No mesmo artigo, Ken Livingstone, prefeito de Londres, acusou Heathrow de manter passageiros como "prisioneiros", o que acaba por situá-lo nos últimos lugares nas pesquisas com usuários, que somam 67 milhões de passageiros/ano, contra 45 milhões previstos no projeto. Para complicar, Heathrow foi comprado no ano passado pelo grupo Ferrovial, espanhol, e já se duvida de que os necessários investimentos em novas pistas e terminais sejam realizados.
Patriotas reclamam que "uma parte essencial da infra-estrutura nacional foi vendida para uma empresa estrangeira". Para completar, a Town and Country Planning Association considera ter sido uma catástrofe planejada a construção desse espaço vital na periferia da cidade e reivindica um novo aeroporto, em "algum lugar com mais espaço".


ROBERTO MUYLAERT, 72, jornalista, foi presidente da TV Cultura de São Paulo de 1986 a 1995 e ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (governo FHC).

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