|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOÃO SAYAD
As profissões:
3 - Os médicos
NO QUARTO em torno do paciente, filhos e esposa esperam o doutor. Ele opera cedo, depois visita pacientes. Entra
como um deus simpático e poderoso, jaleco condecorado com as insígnias do hospital famoso, bronzeado e sorridente. "Como vai nosso paciente?" Dormiu agitado, dor
nas costas, alergia ao remédio. Belisca as bochechas do doente, "Mas
está muito melhor, rosado, pressão
normal e a temperatura baixou".
Sorrisos reconfortados. O doutor
apalpa e diz para a enfermeira: "Veja o que ele quer para almoço. Já
pode comer com sal." Sai rápido, o
filho mais velho atrás para saber a
verdade na conversa do corredor-
poucas chances de recuperação e
sobrevida que não vale a pena.
No hospital de excelência, os melhores médicos do mundo, os equipamentos mais modernos. Aqui o
desafio é morrer. Ciência, equipamentos e drogas impedem que a
morte chegue natural e humana. É
atrasada inutilmente. Os filhos
perdem pai, patrimônio e herança.
A medicina desvendou um segredo
proibido do qual não consegue se
desvencilhar -vencer a morte sem
recuperar a vida.
Na sala dos médicos, vida e morte são assuntos triviais por dever de
ofício. Conversam sobre rivalidades com os colegas, honorários e
"investimentos" no doente. Investe-se com prejuízo porque ninguém mais sabe, nem médicos nem
advogados nem os padres, como se
livrar dos tubos e máquinas que
atrasam a morte.
No hospital público, o médico
chegou atrasado, a fila era longa. O
paciente entra, acabrunhado e zangado com a demora. Senta-se à
frente da mesinha do doutor, de jaleco branco amarelado. O doutor
parece cansado, enfrentou trânsito
para vir do outro hospital, muito
longe, cabelo despenteado, olhar
distante e desesperado. "O senhor
tomou o remédio que eu receitei?"
Estava em falta, era caro, o hospital
só recebe na semana que vem. Na
semana que vem não consigo vir
porque não tem ninguém para ficar
com as crianças.
É um caso fácil. Mas caro. Exige
repouso, o sujeito tem família, não
consegue internação, não pode pagar o tratamento que o governo
não consegue dar para todo mundo. O médico examina, faz outra receita e pede novos exames e nova
consulta, o que deve levar mais um
mês.
O médico sai correndo para outro hospital, tentando recompor a
camada de indiferença e distância,
perfurada por mais este caso, preparando-se para o próximo. Falta
dinheiro para a vida aqui, sobra dinheiro para a morte lá.
jsayad@attglobal.net
JOÃO SAYAD escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: A fortuna do meu tio Próximo Texto: Frases
Índice
|