São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Envelhecimento: é urgente repensar o Brasil

ALEXANDRE KALACHE


Milhões de idosos no Brasil, assim como nos países em desenvolvimento, estão marginalizados, excluídos, carentes. Não faz sentido


EM TERMOS globais, a esperança de vida aumentou 30 anos do início ao fim do século 20. Foi a grande conquista social do século passado: longevidade como norma para a maioria. Essa conquista é agora o grande desafio do século 21: garantir qualidade de vida para os 2 bilhões de idosos de 2050, mais de 80% deles nos países em desenvolvimento.
Essa revolução demográfica repercutirá em todos os setores da sociedade, começando pela saúde, um valor universal. Sim, as pessoas querem envelhecer, desde que com um grau de saúde suficiente para gozar dos anos a mais de vida.
À chamada transição demográfica (mais idosos, ou seja, taxas mais baixas de mortalidade = esperança de vida mais longa, e menos jovens, conseqüente a taxas de natalidade mais baixas) segue-se a transição epidemiológica: doenças não-transmissíveis com um maior peso à custa do declínio das doenças infecciosas, o que já aconteceu no Brasil nas últimas décadas.
Isso exige uma revisão drástica das políticas de saúde. Há progresso, mas há muito mais a ser feito. O perfil das doenças mudou, mas o sistema ainda enfatiza o cuidado com o "agudo", em vez de se adaptar ao caráter cada vez mais crônico das doenças. É como tratar de um paciente adulto ou idoso com diabetes e hipertensão como se fosse um caso de diarréia ou pneumonia infantil. Não dá certo!
Nos países desenvolvidos, as pessoas estão vivendo mais e melhor. Como nos EUA, onde, em 1982, havia cerca de 7 milhões de idosos com incapacidades, o mesmo número de hoje, apesar de a população de idosos ter aumentado de 27 milhões para 34 milhões. Se as taxas de incapacidade de 1982 tivessem sido mantidas inalteradas, teríamos hoje 2 milhões extras de idosos incapacitados -ou seja, os americanos estão vivendo mais com melhor saúde.
E nos países em desenvolvimento? Faltam-nos dados confiáveis e estudos rigorosos. A pergunta é crucial. Os países desenvolvidos primeiro se tornaram ricos para depois envelhecerem -nós estamos envelhecendo rapidamente, antes de sermos ricos.
O Brasil tem um Estatuto do Idoso de fazer inveja -mas pouco observado na prática. Temos uma tradição de cuidado dos idosos na família -mas, com as transformações sociais e culturais dos últimos anos, tal tradição está sob séria ameaça. E temos ainda uma cultura obcecada pelo padrão de beleza física jovem, do corpo, hedonística: isso não ajuda ninguém a ficar de cabelos brancos, calvo, mais lento e sem o apogeu físico dos 25 anos.
As pensões não-contributivas representam uma experiência social no Brasil de imensa importância. Elas hoje beneficiam cerca de 6 milhões entre os mais pobres dos idosos brasileiros. Em torno dessa pensão miserável gravita a economia de mais de 2.000 municípios. É a única fonte de renda de muitas famílias, garantindo o crédito, sustentando o comércio, comprando o uniforme e a cartilha dos netos, a comida do dia-a-dia, o remédio que o posto de saúde não tem.
Nessas trocas intergeracionais fica clara a contribuição do idoso para sua comunidade -que, por ser difícil de quantificar, é tantas vezes descartada pela sociedade. Prevalece o estereótipo: idoso é quem recebe cuidados, quando, na realidade, ele os provê com grande freqüência. Não há dúvida: ante esse envelhecimento galopante, há que repensar o contrato entre as gerações. E que ele seja pautado pela solidariedade. Entre o rico e o pobre, o público e o privado e, sobretudo, entre o jovem e o idoso.
Em 2002, as Nações Unidas celebraram a Assembléia Mundial do Envelhecimento, em Madri, quando o Plano Internacional de Ação para o Envelhecimento foi endossado por 192 países. Se posto em prática, no "futuro", envelhecer será não um exercício de sobrevivência, mas isto sim, uma etapa da vida a ser celebrada e bem vivida.
Mas estamos longe dele. Milhões de idosos no Brasil -como, de resto, nos países em desenvolvimento- estão marginalizados, excluídos, carentes. Não faz sentido! Ao longo da história, a humanidade buscou a "fonte da juventude". E, agora, quando o envelhecimento passa a ser a norma, lamentamos envelhecer, como se fosse a pior coisa que nos pudesse acontecer individual e coletivamente. E não é: ruim é morrer cedo, a única alternativa para o envelhecimento.

ALEXANDRE KALACHE , médico, doutor em saúde pública pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e fundador do departamento de Epidemiologia do Envelhecimento da London School of Hygiene and Tropical Medicine, é chefe do Programa de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial de Saúde) desde 1995.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Almino Affonso: Fernando Gasparian, um símbolo

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.