São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Indignação e justiça

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE


E ainda dizem que a Justiça brasileira não é eficiente. No governo militar, foi preciso um Ato Institucional para expulsar professores da USP


OFENDIDO COM o fato de ter sido acusado de racista, o senador por Santa Catarina e presidente do PFL, Jorge Bornhausen, processou o professor Emir Sader e obteve a condenação dele por injúria.
O senador havia afirmado que "a gente vai se ver livre dessa raça por pelo menos 30 anos". A "raça" mencionada era presumivelmente a dos cidadãos brasileiros do PT ou simpatizantes do partido.
O sociólogo revidou classificando o senador como sendo "das pessoas mais repulsivas da burguesia brasileira. Banqueiro, direitista, adepto das ditaduras militares", disse, "revela todo seu racismo e seu ódio ao povo brasileiro que saiu do fundo da sua alma (...)". Note-se primeiro a inconsistência da acusação. O sociólogo acusa o senador de ser banqueiro e, depois, reconhece que tem ele alma.
Uma característica única e profundamente intrigante na sentença do meritíssimo juiz Rodrigo César Müller Valente é que não houve condenação por calúnia e injúria, como é usual em casos semelhantes, mas apenas por injúria. Teria o meritíssimo considerado que não houve calúnia, mas apenas injúria?
E eu me pergunto se, caso eu chamasse o senador Bornhausen de fascista e ele fosse fascista, seria crime? E se eu chamar um racista de racista, é crime? Então, por que não foi o professor Sader condenado por calúnia, se não há contestação de que seja o senador racista, isto é, se não há crime de calúnia?
Se, por outro lado, o senador tivesse proposto que "a gente ficasse livre da raça tupiniquim por pelo menos 30 anos", ele seria com toda certeza considerado racista. Ora, não sei para um banqueiro, mas certamente para um acadêmico, um intelectual, o conceito de raça não tem sentido nenhum. É um conceito elástico, de natureza puramente circunstancial e subjetiva, que não é cientificamente definível.
Assim, para um sociólogo, se alguém se referir à extinção da raça de petistas, essa mesma pessoa está se declarando tão racista quanto se tivesse proposto o extermínio dos tupiniquins. Então está explicado por que o meritíssimo juiz não condenou o professor Sader por calúnia. Um juiz inteligente.
Justifica-se o juiz: "Ao adjetivar um senador da República de "racista", se esqueceu o réu de todos os honrados cidadãos catarinenses que, por meio do exercício democrático do voto, o elegeram como legítimo representante em nossa República federativa.
Trata-se, pois, de conduta gravíssima, que de modo algum haveria de passar despercebida". Quer dizer que a gravidade do crime depende do número de votos da vítima? Se o sr. Bornhausen fosse deputado em vez de senador, a pena seria de três meses? Um senador vale quantos deputados na Justiça brasileira?
E, "mutatis mutandis", quantos anos de cadeia vão pegar pelas injúrias aos eleitores do presidente Lula os membros da bancada do PFL na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, que nada fizeram senão vituperar contra o PT e seus membros nestes últimos dois anos? Ou será que não merecem a mesma Justiça que os "honrados cidadãos catarinenses" que votaram no senador catarinense os cidadãos brasileiros que elegeram o presidente Lula e os representantes do PT, essa raça que o senador quer eliminar por 30 anos?
Mas vamos adiante. O meritíssimo juiz Rodrigo César Müller Valente também expulsa o professor Emir Sader da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
E ainda dizem que a Justiça brasileira não é eficiente. Durante o governo militar, para expulsar da USP, entre outros, o então professor Fernando Henrique, também sociólogo e, hoje, unha e carne com senador Bornhausen, o reitor Buzaid teve de se valer de um Ato Institucional.
Não é uma maravilha o progresso que fez a Justiça brasileira? Não precisamos mais de golpes, de Juntas Militares, de AI-5, AI-3 etc., nem de Obans ou Doi-Codis.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 75, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha .


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