São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É bem-vinda a Lei do Esporte?

NÃO

Falta gente na mesa

YACOFF SARKOVAS

NESTA SEMANA, a imprensa divulgou uma imagem inusitada. Personalidades artísticas e esportivas do país, sentadas lado a lado, disputando dedução fiscal do Imposto de Renda das empresas para suas áreas. Cada grupo se defendia destacando os benefícios sociais de sua atividade.
É inegável que cultura e esporte são de interesse da sociedade. Mas a questão central, propositadamente, passou ao largo dos holofotes: o modelo de financiamento público por dedução fiscal é insustentável econômica e socialmente.
Vamos imaginar que os médicos também reivindiquem lugar à mesa para investir um naco do imposto na saúde pública, a seu critério; os educadores, para manter abertas escolas públicas; as empresas de transporte, para criar estradas exclusivas; e -por que não?-, cada cidadão, para reter outro tanto do imposto para montar seu próprio esquema de segurança.
Quem sabe, até fazer justiça com as próprias mãos. Antes que a mesa estivesse cheia, não haveria mais imposto a recolher. Por conseqüência, poderíamos suprimir o Estado e dispensar os governos.
Tomar posse de recursos públicos sem contrapartida e destiná-los por critérios individuais e privados é um ato anti-republicano. Desinformados e iludidos pela justa perspectiva de injetar recursos no seu campo de atividade, atletas cometem o mesmo erro histórico dos artistas: lutam para propagar o câncer do incentivo fiscal, em vez de exigir políticas e fundos de financiamento direto do Estado, regidos por critérios técnicos e públicos. Esse modelo do incentivo fiscal, único no mundo, foi criado pela Lei Sarney, em 1986 -substituída pela Lei Rouanet por Collor, em 1991-, ampliado com a Lei do Audiovisual por Itamar, em 1993, e replicado por municípios e Estados via dedução no ISS, IPTU e ICMS. As leis de incentivo mobilizarão, neste ano, cerca de R$ 1 bilhão. Recursos públicos que financiam somente a parcela da produção cultural que desperta o interesse das empresas.
A dedução fiscal gera produção cultural porque distribui dinheiro, mas não é lógica nem justa. É uma forma prática de obter recursos sem enfrentar disputas no Orçamento. Nada tem a ver com patrocínio ou investimento privado de verdade. Empresas promovem ações sociais, ambientais, culturais, esportivas, de entretenimento e comportamento por serem uma estratégia eficaz, saudável e rentável de valorizar marcas e fortalecer relacionamentos. Por isso, em todo mundo, investem seus próprios recursos de marketing e comunicação.
No Brasil, a Lei do Audiovisual permite dedução integral no imposto a pagar e, ainda, o abatimento como despesa, reduzindo o imposto acima do valor aplicado. O resultado é um ganho real de mais de 130% ao "investidor", sem risco. Espectadores-cidadãos não se dão conta de que as marcas que aparecem na abertura dos filmes brasileiros são de empresas que ganham dinheiro público para fingir que são investidoras culturais e decidir que aquele filme, e não outro, deva ser produzido.
Longe dos holofotes, esse mecanismo perdulário está sendo ampliado, no Congresso, em regime de urgência, pelo projeto de lei nš 7.193/2006, enquanto o público se entretém com a disputa artistas versus atletas. A Lei do Audiovisual contaminou outras leis de incentivo fiscal, a começar pela Lei Rouanet, que, desde 1997, permite 100% de dedução, como agora ocorrerá com a Lei do Esporte. Importante saber: em outros países, incentivo fiscal é somente lançar as contribuições à cultura como despesa na declaração de renda. Ou seja, é poder doar dinheiro do próprio bolso sem ter de pagar imposto por isso.
É certo que o Estado brasileiro consome 50% do PIB, e pouco do que devolve tem valor reconhecido pela sociedade; é compreensível que os brasileiros desconfiem que os nossos governos sejam regidos pela corrupção. Mas não corrigiremos mazelas históricas subtraindo recursos e responsabilidade públicas para distribuí-las a interesses privados.
Melhor seria lutar para reduzir a carga tributária, para benefício da sociedade civil, e ajudar a construir um Estado mais eficaz, com capacidade de formular e implementar políticas públicas, financiando diretamente as ações por princípios republicanos.


YACOFF SARKOVAS, 52, especialista em atitudes de marca, é diretor-geral da Significa e da Articultura.

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