São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O paradoxo Severino

FRANCISCO DE OLIVEIRA

Foi o governo que elegeu Severino Cavalcanti presidente da Câmara. Esse disparate explica-se: o arco de alianças armado em nome da governabilidade, de um amálgama que assustaria o mais atrevido alquimista, revela um governo fraco, sem projeto nacional, a não ser a recondução do presidente, presa fácil para todas as pretensões. Lembra a história de "O Velho e o Mar", de Hemingway: tendo pescado um peixão acima da capacidade de seu barquinho, o velho vê o peixe devastado pelos tubarões, até chegar à praia apenas com um enorme esqueleto.


O mais inquietante que essa eleição confirma é a desimportância crescente da política, a sua irrelevância


Renunciando ao seu mandato reformista, o PT refez um sistema partidário que já estava falido, como resultado do turbilhão dos mandatos de FHC, e tornou-se prisioneiro do nada. Em lugar de jogar a definitiva pá de cal sobre os escombros de partidos sem nenhuma representatividade, recuou e, pensando ter recebido um mandato de união nacional, convocou do partido de Paulo Maluf aos liberais, de permeio com todas as siglas de aluguel. O resultado é algébrico: menos com menos dá mais. Menos representatividade somada a menos representatividade dá um governo inerte, sem capacidade hegemônica, cuja única performance significativa se dá na economia, precisamente porque nada mudou e permanece soberana a política encetada, primeiro, por Collor e implementada, de fato, por FHC.
Mas não é disparatado que tenha sido o deputado Cavalcanti, conhecido como o "rei do baixo clero", o vencedor. Isso mostra que o governo do PT está emaranhado em pequenas negociações, em arranjos paroquiais, para fazer passar sua vontade na casa principal do Legislativo. Ainda se fosse para grandes reformas, até se admite, mas não, é para o pequeno varejo. Pensou que fez passar a reforma da Previdência pela sua capacidade, quando, na verdade, apenas recolheu os votos dos tucanos e pefelistas, votando em seu próprio projeto inacabado. Conhecendo a fraqueza do governo, o "baixo clero", por sua principal liderança, lançou-se ao assalto do Palácio do Planalto. Porque é isso que virá, reforçado, com o deputado de Pernambuco. Acuará o governo permanentemente, trocando por miudezas seu apoio às vontades do governo, o que aumentará, na contramão da aritmética política primária dos gênios políticos do Planalto, a ingovernabilidade.
É inescapável que a condução política do governo acrescente à permissividade que caracteriza a formação de sua base parlamentar uma enorme incompetência política e escusado dizer que, quando Lula assume a coordenação política, o desastre é quase previsível. Pensando e fazendo política como se fosse negociação sindical, o presidente anula a política, pois, se tudo pode ser negociado, nada é prioritário.O presidente não tem posição definida sobre nada, e os políticos, escolados também no mesmo fazer, podem mudar à vontade. Basta ver que o novo presidente da Câmara já passou por nada menos que seis partidos desde que se iniciou na política partidária.
Tudo isso não quer dizer que haverá, de agora em diante, oposição ao Executivo nem que o senhor Cavalcanti vá liderar algo que se oponha aos desígnios do Planalto. Significa apenas que tudo sairá mais caro: mais emendas de parlamentares e barganhas maiores e mais freqüentes por cargos. O PMDB, cujo apetite vem sendo saciado crescentemente pelo governo, foi a principal fonte de votos de Severino. Convenhamos que, para uma casa que já teve Ulysses Guimarães na presidência, a nova cara na principal cadeira da Câmara não ficará bem na galeria dos ex no futuro.
O mais inquietante que essa eleição confirma é a desimportância crescente da política, a sua irrelevância, o que se avalia tanto pela biografia do novo presidente -inexpressivo deputado de um inexpressivo partido, vindo de Pernambuco, que se enfraquece a olhos vistos como força política na Federação (e olha que me custa dizer isso, pois sou pernambucano e recifense roxo)-, quanto pelo fato de que os negócios se assustaram logo que a notícia correu, com a Bolsa despencando, para voltarem à normalidade quando se decifrou o enigma. Greenhalgh mesmo se perguntou, na notícia dada pela Folha Online de ontem, dia 16: "Que partido ganhou as eleições?". Tem razão o deputado: nenhum. Foi a política quem saiu perdendo. O Senado elegeu o principal líder collorido, que pensou com ele, em Pequim, uma brincadeira para chegar ao Planalto que terminou dando certo, para surpresa deles mesmos, e, de cambulhada, foi ministro da Justiça de FHC. Se Palocci e Meirelles, este principalmente, continuam em seus postos e funções, nada além disso tem importância. Nem mesmo o presidente. O Estado é o Ministério da Fazenda e o Banco Central. O resto é luxo de miçangas e paetês de escola de samba que se permite hoje aos países "emergentes".
Entre as muitas ironias que a história prega constantemente aos que pensam estar acima dela, Lula, que foi introduzido na Câmara, quando da posse, pelo deputado Severino Cavalcanti, corre o risco de tê-lo de novo como guia para encontrar os caminhos e corredores dos fundos do prédio de Niemeyer quando terminar o mandato. Com esse desempenho, valha-nos Deus, os tucanos estarão de volta.

Francisco de Oliveira, 71, economista e sociólogo, professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é coordenador científico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da USP.


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