São Paulo, sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O neopopulismo na América Latina

BORIS FAUSTO

Comecemos enumerando algumas características do neopopulismo latino-americano que o distingue de sua forma antiga. Dois elementos básicos estabelecem a diferença entre um e outro, originadas, principalmente, de contextos socioeconômicos diversos.


E o Brasil? Há boas razões para crer na estabilidade das instituições democráticas e na sua consolidação


O populismo clássico correspondeu a um período de desenvolvimento "para dentro" das maiores nações da América Latina, entre 1940 e 1960, aproximadamente. Assentava-se num tripé que tinha como motor básico o Estado nacional-desenvolvimentista, apoiado socialmente na classe trabalhadora organizada e na burguesia industrial.
O neopopulismo emerge em outra época, no âmbito da globalização, que se tornou nítida a partir dos anos 1980. Em linhas gerais, o Estado mudou de configuração, sem deixar de ter relevância (há neopopulismos mais fortes e mais fracos em função da consistência dos respectivos Estados), e a base de apoio ao populismo mudou.
A burguesia internacionalizada ou desfeita abandonou o barco populista e a fonte de apoio popular se alterou. O neopopulismo não se assenta sobre a classe trabalhadora organizada, hoje sem a importância de outros tempos, mas, sobretudo, em massas marginalizadas, predominantemente urbanas. Sua composição varia de país a país e a diferença mais nítida diz respeito às populações indígenas, como são os caso de Bolívia, Peru e Equador, com reivindicações étnicas específicas.
Como no passado, as novas lideranças populistas se caracterizam pelo personalismo, pela difusão da crença no herói salvador, pelas práticas autoritárias.
Uma das raízes de sua emergência se encontra nos deslocamentos sociais provocados pela globalização. Se não tem sentido demonizar esse processo histórico, é certo que ele deixou à margem setores pobres ou miseráveis da sociedade. Mais ainda, a modernização do sistema produtivo, ao mesmo tempo que representou ganhos de produtividade e possibilidades de ascensão aos mais qualificados, gerou enormes contingentes de desempregados ou de trabalhadores informais.
Como o regime democrático não resolveu esses problemas -e era ilusão pensar que pudesse resolvê-los por simples decorrência de seus princípios-, as fórmulas populistas, apenas adormecidas, vieram à luz, contando com o apoio de populações desiludidas ou credoras de uma dívida histórica.
O neopopulismo tem sido objeto de avaliações muito diversas. Para certas correntes ditas de esquerda, o neopopulismo (cuja expressão máxima é o regime de Hugo Chávez, na Venezuela) representa um novo caminho para o socialismo, uma "onda vermelha" que se espalha pela América Latina, como se Deus escrevesse certo por linhas tortas.
Essa visão encontra eco no polo oposto, na extrema direita latino-americana, para quem é ilusório falar em avanço do neopopulismo, pois estaríamos diante de uma ofensiva neocomunista com ramificações muito atuantes.
Não faz sentido minimizar o risco representado pela emergência das novas formas de neopopulismo, que se irradia pela Venezuela, Bolívia, Peru, Equador e outros países. Mas também não é de se crer na força inexorável da onda populista; afinal de contas, a América Latina é bem mais diversificada do que parece aos hegemonistas apressados.
Uma referência à situação política de alguns países e às alternativas que se abrem nas várias disputas eleitorais do ano corrente nos ajuda a entender a diversidade do quadro e as perspectivas de afirmação da democracia a partir de diferentes posições do espectro político.
No Chile, o governo da Concertación (aliança entre socialistas e democratas cristãos) segue seu curso positivo de mais de uma década, reforçado pela vitória da socialista Michelle Bachelet.
Num contexto conturbado e, portanto, muito diverso, o presidente colombiano Álvaro Uribe goza de grande popularidade e tem tudo para se reeleger nas eleições do final deste ano.
No Peru, a ascensão nas pesquisas de um ex-militar nacionalista-populista, Ollanta Umala, abençoado por Chávez e acusado de violação dos direitos humanos, parece estar declinando, ao ser superado pela candidata conservadora Lourdes Flores.
No México, a candidatura populista de López Obrador, que parecia irresistível, cede lugar a uma dura disputa com outros nomes (Roberto Madrazo, Felipe Calderón).
Não se trata aqui de endossar simplesmente as figuras antipopulistas, mas todas elas, com seus méritos e defeitos, têm compromisso com a democracia.
Uma boa forma de conservar um razoável otimismo acerca da consolidação da democracia consiste em olhar para um passado de pouco mais de três décadas. Brasil, Argentina, Chile e Uruguai eram então países assolados por ditaduras militares que se diferenciavam apenas pelo grau de violência.
Hoje, o Chile é uma referência democrática; a Argentina, ainda que com laivos populistas, vai se reafirmando política e socialmente; o Uruguai, governado pelo socialista Tabaré Vasquez, interrompeu, pela via democrática, mais de cem anos de um revezamento entre "blancos" e "colorados".
E o Brasil? Se a crise do PT e os apetites eleitorais estão lançando o presidente Lula, cada vez mais, numa retórica populista, há boas razões para crer na estabilidade das instituições democráticas e na sua consolidação. Afinal de contas e apesar dos percalços, temos mais de 20 anos de regime democrático -e isso, na América Latina, não representa pouco.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Cia. das Letras).


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