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São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 2006 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Sobre o "vovô viu a uva"
SÉRGIO ANTÔNIO DA SILVA LEITE
Nesse sentido, apresento, resumidamente, alguns pontos, com o intuito de enriquecer o debate. 1) O processo tradicional de alfabetização escolar, que tem como ícone as tradicionais cartilhas, concebe a linguagem escrita como um mero sistema gráfico de representação da linguagem oral. Daí a idéia do ler e do escrever como atos de codificação e decodificação. Tal proposta começou a ser questionada a partir da segunda metade do século passado, período em que se inicia um crescente processo de profundas mudanças sociais e econômicas -principalmente nas relações de trabalho-, começando a exigir de todos os cidadãos (e não só das classes cultural e economicamente dominantes) uma relação mais funcional com a escrita. 2) Simultaneamente, inúmeros trabalhos em diversas áreas do conhecimento têm demonstrado que o domínio do código escrito não implica um envolvimento do indivíduo com as práticas sociais de leitura e escrita, isto é, dominar o código não garante que o aluno se torne leitor ou produtor de textos. Daí o conceito de analfabeto funcional -ou seja, o cidadão é capaz de realizar a decodificação, mas não se envolve com as práticas sociais de leitura e escrita- proposto pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). 3) A partir de 1985, chega ao Brasil a teoria construtivista, rapidamente assumida como a solução para o problema da alfabetização e interpretada, enganosamente, como um método pedagógico. Obviamente, o construtivismo, como uma teoria psicológica, contribui, mas não responde a todas as implicações do processo de alfabetização escolar, teoricamente multideterminado. 4) As concepções atuais de alfabetização se baseiam na idéia de que a escrita é um sistema simbólico, desenvolvido pela cultura, de natureza histórica e social. Sua essência, portanto, centra-se nas representações/significados/sentidos que os indivíduos atribuem a partir do código. Daí a idéia de que ler e escrever são processos de produção de significados, o que, obviamente, não exclui a importância do domínio do código, mas o coloca atrelado ao significado. 5) Assim, não é mais possível pensar na alfabetização escolar somente como um processo de apropriação do código, uma vez que a sua essência se relaciona com o seu significado. Além disso, deve-se lembrar que a escrita é um sistema caracterizado pelos seus usos sociais, o que garante a sua funcionalidade. Isso possibilitou o reconhecimento, em nosso meio, do conceito de letramento, relacionado com as práticas sociais de leitura e escrita. 6) Nessa perspectiva, um dos grandes objetivos da escola deve ser ampliar ao máximo os níveis de letramento dos alunos, ou seja, possibilitar a eles o envolvimento com as práticas de leitura e escrita durante toda a vida escolar, visando à sua ampla inserção social como cidadãos. 7) A alfabetização, por sua vez, é um processo restrito às séries iniciais, que deve garantir ao aluno a apropriação das dimensões alfabética e ortográfica da escrita, o que inclui as relações grafema-fonema, consciência fonológica e fonética, convenções ortográficas etc. No entanto, deve ser desenvolvida a partir da escrita socialmente funcional, que tem no texto a sua principal forma de expressão. 8) Ao nosso ver, essas são as razões pelas quais a volta do "vovô viu a uva" representa um retrocesso inaceitável. O desafio que efetivamente se coloca aos educadores é alfabetizar na perspectiva do letramento, na qual o aluno, desde o início de sua escolarização, tenha contato com a escrita verdadeira -a escrita que corresponde aos usos sociais de sua cultura. Queremos que nossos alunos se constituam como leitores e produtores de textos e, simultaneamente, se apropriem da escrita ortográfica. Uma última palavra (ou desafio): todo o processo de alfabetizar letrando pode ser desenvolvido numa perspectiva de conscientização dos indivíduos -transformação da consciência ingênua em consciência crítica-, o sonho do nosso saudoso e eterno mestre Paulo Freire. Essa pode ser a alternativa efetiva para os educadores alfabetizadores comprometidos com a formação de cidadãos críticos e de uma sociedade mais justa. Sérgio Antônio da Silva Leite, 59, doutor em psicologia pela USP, professor da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é membro do grupo de pesquisa Alle (Alfabetização, Leitura e Escrita). Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Eduardo Matarazzo Suplicy: Carta ao MST Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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