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TENDÊNCIAS/DEBATES
A urbanização e o falso milagre do Cepac
JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA e MARIANA FIX
A o defender o Cepac (Certificado
de Potencial Adicional de Construção) como uma "mina de ouro" para a
prefeitura, o deputado Marcos Cintra
(PFL-SP) reabre uma polêmica cuja
questão central não é jurídica, mas urbanística. Existem muitas "minas de
ouro" a serem exploradas pelo poder
público. O problema está nas consequências negativas para a sociedade.
Os que defendem a eficácia reguladora do mercado geralmente se "esquecem" desses "detalhes".
No caso do Cepac, a "mina" só renderá se os investimentos públicos urbanos
forem condicionados pelos interesses
do mercado imobiliário -interesses
sobre uma pequena parte de São Paulo,
pois 70% da cidade é economicamente
excluída, não faz parte do mercado.
A idéia do Cepac é a seguinte: a prefeitura, em comunhão com o mercado,
define áreas em que haja o interesse, da
iniciativa privada, pela venda de exceções à Lei de Zoneamento e nas quais a
infra-estrutura urbana permita um
adensamento adicional, para promover
as "operações urbanas". A novidade é o
lançamento antecipado no mercado financeiro de títulos equivalentes ao valor
total desse estoque de potencial construtivo "a mais", os Certificados de Potencial Adicional de Construção, gerando recursos imediatos ao poder público.
Para se aproveitar do direito adicional
de construção na área, o empreendedor
teria de adquirir Cepacs no mercado e
restituí-los à prefeitura. Segundo Cintra, um instrumento de arrecadação
com fins sociais, moderno e inovador.
Um primeiro problema do Cepac é a
desvinculação que o título cria entre a
compra do potencial construtivo e a
posse do lote. Como qualquer um pode
comprar o título, tendo ou não lote na
região, e o seu valor -como com qualquer título financeiro- pode variar, gera-se um novo tipo de especulação imobiliária, "financeirizada".
Os defensores da idéia dizem que tal
dinâmica não está à mercê do mercado:
os Cepacs seriam lançados em operações específicas, sob o controle do poder público, e teriam um "forte componente social", pois poderiam ser vendidos para alavancar a reurbanização de
favelas ou a recuperações de cortiços.
Os recursos poderiam ser usados em
melhorias na cidade toda.
O "controle" do poder público é relativo, pois os Cepacs -e, consequentemente, as operações urbanas em que serão lançados- são encarados apenas
como uma fonte de recursos. Como a
prefeitura precisa de dinheiro, buscará,
se adotar a lógica de Cintra, multiplicar
ao máximo as operações urbanas.
Institucionaliza-se a especulação imobiliária como elemento motivador da
renovação urbanística da cidade. A conformação de seu desenho não se dá em
função de ação planejada e de prioridades urbanas estabelecidas a partir da demanda participativa da população (sobretudo dos 70% excluídos), mas se subordina ao interesse do mercado, que
justificará ou não as operações.
Ora, parcerias com a iniciativa privada devem ser parte de um plano maior,
em que o poder público e a população
estabeleçam as necessidades da área a
ser renovada -habitações, parques,
passeios- e, a partir daí, definam as
contrapartidas à iniciativa privada.
Quando as áreas são escolhidas só pelo
potencial de gerar dinheiro, as condicionantes urbanísticas são esquecidas.
"O Cepac" institucionaliza
a especulação imobiliária
como o elemento
motivador da renovação
urbanística da cidade
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Quanto aos recursos arrecadados
com os Cepacs, eles servirão para investimentos públicos essencialmente nas
áreas de interesse do mercado, em detrimento da periferia. Essa já é a lógica
das operações urbanas: fazer a iniciativa
privada financiar a recuperação da própria área da operação, vendendo-lhe o
direito adicional de construção. É evidente que o mercado só se interessa por
áreas nas quais vislumbrem valorização
que justifique a compra do potencial
construtivo adicional. O Cepac exacerba essa lógica, pois sendo um título, ele
só funciona se for valorizado -ou torna-se um "mico". Os títulos, portanto,
só podem ser lançados em áreas que interessem ao mercado. Ou alguém imagina a iniciativa privada comprando
Cepacs em Guaianazes?
Além disso, a prefeitura terá de investir muito em obras que potencializem a
valorização dessas áreas e, por conseguinte, os Cepacs a elas relacionados.
As operações urbanas Faria Lima (que
tentou lançar os Cepacs) e Águas Espraiadas são exemplos do que falamos.
Parcerias motivadas pelo interesse de
empreendedores num "filé mignon" da
cidade, objeto dos principais investimentos públicos da gestão Maluf/Pitta
(enterrando as finanças municipais). A
área se transformou no símbolo da São
Paulo globalizada; as periferias esquecidas pelos investimentos públicos continuaram crescendo aceleradamente.
Nenhuma contrapartida foi oferecida
à sociedade: na Faria Lima, não há notícias das habitações de interesse social e
do terminal de ônibus prometidos.
Apenas foi feita uma ciclovia ligando o
nada a lugar nenhum. Nem sequer do
ponto de vista da qualidade do espaço
urbano houve melhorias: ostensivas
cercas continuam dividindo o espaço
privado das calçadas estreitas, em que
se apertam ambulantes, pedestres e
pontos de ônibus.
Discursos como o dos Cepacs vestem
um disfarce ideológico que confere a
eles uma aura de modernidade com fins
supostamente sociais, mas são usados
para transformar um instrumento jurídico controverso e contestado pelos
efeitos desfavoráveis, que deve beneficiar os poucos de sempre, em uma solução tentadora de arrecadação.
João Sette Whitaker Ferreira é arquiteto, urbanista e economista, professor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo e pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos
da USP. Mariana Fix é arquiteta, urbanista e
pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da USP.
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