São Paulo, terça-feira, 17 de abril de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A urbanização e o falso milagre do Cepac

JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA e MARIANA FIX

A o defender o Cepac (Certificado de Potencial Adicional de Construção) como uma "mina de ouro" para a prefeitura, o deputado Marcos Cintra (PFL-SP) reabre uma polêmica cuja questão central não é jurídica, mas urbanística. Existem muitas "minas de ouro" a serem exploradas pelo poder público. O problema está nas consequências negativas para a sociedade.
Os que defendem a eficácia reguladora do mercado geralmente se "esquecem" desses "detalhes".
No caso do Cepac, a "mina" só renderá se os investimentos públicos urbanos forem condicionados pelos interesses do mercado imobiliário -interesses sobre uma pequena parte de São Paulo, pois 70% da cidade é economicamente excluída, não faz parte do mercado.
A idéia do Cepac é a seguinte: a prefeitura, em comunhão com o mercado, define áreas em que haja o interesse, da iniciativa privada, pela venda de exceções à Lei de Zoneamento e nas quais a infra-estrutura urbana permita um adensamento adicional, para promover as "operações urbanas". A novidade é o lançamento antecipado no mercado financeiro de títulos equivalentes ao valor total desse estoque de potencial construtivo "a mais", os Certificados de Potencial Adicional de Construção, gerando recursos imediatos ao poder público.
Para se aproveitar do direito adicional de construção na área, o empreendedor teria de adquirir Cepacs no mercado e restituí-los à prefeitura. Segundo Cintra, um instrumento de arrecadação com fins sociais, moderno e inovador.
Um primeiro problema do Cepac é a desvinculação que o título cria entre a compra do potencial construtivo e a posse do lote. Como qualquer um pode comprar o título, tendo ou não lote na região, e o seu valor -como com qualquer título financeiro- pode variar, gera-se um novo tipo de especulação imobiliária, "financeirizada".
Os defensores da idéia dizem que tal dinâmica não está à mercê do mercado: os Cepacs seriam lançados em operações específicas, sob o controle do poder público, e teriam um "forte componente social", pois poderiam ser vendidos para alavancar a reurbanização de favelas ou a recuperações de cortiços. Os recursos poderiam ser usados em melhorias na cidade toda.
O "controle" do poder público é relativo, pois os Cepacs -e, consequentemente, as operações urbanas em que serão lançados- são encarados apenas como uma fonte de recursos. Como a prefeitura precisa de dinheiro, buscará, se adotar a lógica de Cintra, multiplicar ao máximo as operações urbanas.
Institucionaliza-se a especulação imobiliária como elemento motivador da renovação urbanística da cidade. A conformação de seu desenho não se dá em função de ação planejada e de prioridades urbanas estabelecidas a partir da demanda participativa da população (sobretudo dos 70% excluídos), mas se subordina ao interesse do mercado, que justificará ou não as operações.
Ora, parcerias com a iniciativa privada devem ser parte de um plano maior, em que o poder público e a população estabeleçam as necessidades da área a ser renovada -habitações, parques, passeios- e, a partir daí, definam as contrapartidas à iniciativa privada. Quando as áreas são escolhidas só pelo potencial de gerar dinheiro, as condicionantes urbanísticas são esquecidas.


"O Cepac" institucionaliza a especulação imobiliária como o elemento motivador da renovação urbanística da cidade
Quanto aos recursos arrecadados com os Cepacs, eles servirão para investimentos públicos essencialmente nas áreas de interesse do mercado, em detrimento da periferia. Essa já é a lógica das operações urbanas: fazer a iniciativa privada financiar a recuperação da própria área da operação, vendendo-lhe o direito adicional de construção. É evidente que o mercado só se interessa por áreas nas quais vislumbrem valorização que justifique a compra do potencial construtivo adicional. O Cepac exacerba essa lógica, pois sendo um título, ele só funciona se for valorizado -ou torna-se um "mico". Os títulos, portanto, só podem ser lançados em áreas que interessem ao mercado. Ou alguém imagina a iniciativa privada comprando Cepacs em Guaianazes?
Além disso, a prefeitura terá de investir muito em obras que potencializem a valorização dessas áreas e, por conseguinte, os Cepacs a elas relacionados.
As operações urbanas Faria Lima (que tentou lançar os Cepacs) e Águas Espraiadas são exemplos do que falamos. Parcerias motivadas pelo interesse de empreendedores num "filé mignon" da cidade, objeto dos principais investimentos públicos da gestão Maluf/Pitta (enterrando as finanças municipais). A área se transformou no símbolo da São Paulo globalizada; as periferias esquecidas pelos investimentos públicos continuaram crescendo aceleradamente.
Nenhuma contrapartida foi oferecida à sociedade: na Faria Lima, não há notícias das habitações de interesse social e do terminal de ônibus prometidos. Apenas foi feita uma ciclovia ligando o nada a lugar nenhum. Nem sequer do ponto de vista da qualidade do espaço urbano houve melhorias: ostensivas cercas continuam dividindo o espaço privado das calçadas estreitas, em que se apertam ambulantes, pedestres e pontos de ônibus.
Discursos como o dos Cepacs vestem um disfarce ideológico que confere a eles uma aura de modernidade com fins supostamente sociais, mas são usados para transformar um instrumento jurídico controverso e contestado pelos efeitos desfavoráveis, que deve beneficiar os poucos de sempre, em uma solução tentadora de arrecadação.


João Sette Whitaker Ferreira é arquiteto, urbanista e economista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da USP. Mariana Fix é arquiteta, urbanista e pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da USP.






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