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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Supremo Tribunal Federal deve rever a Lei de Anistia?
SIM
Lei não vale para todos os crimes
DALMO DE ABREU DALLARI, PIERPAOLO CRUZ BOTTINI e IGOR TAMASAUSKAS
EM BREVE O STF (Supremo Tribunal Federal) decidirá a real
extensão da Lei de Anistia, aprovada há 30 anos pelo Congresso Nacional, que concede anistia aos que
cometeram crimes políticos ou conexos entre 2/9/61 e 15/8/79.
Discute-se se é possível caracterizar os atos de tortura cometidos por
agentes do regime militar como "crimes políticos" e, diante disso, anistiar
tais atos.
O STF já decidiu o que são crimes
políticos: são delitos praticados contra a ordem estabelecida, com finalidade ideológica.
O caráter político do crime não é
caracterizado apenas por sua motivação política, mas pelo fato de lesionar
a organização vigente do Estado.
Ora, se crime político é aquele que
lesiona a ordem instituída, ficam evidentemente excluídos dessa definição os delitos praticados por agentes dessa mesma ordem para garantir sua manutenção.
Não é possível afirmar que os servidores do regime de exceção, cujo
comportamento se destinava a manter o funcionamento desse mesmo regime, praticaram crimes políticos.
Por outro lado, a Lei de Anistia
também trata de crimes conexos aos
políticos. Aqui há outra indagação: os
delitos de tortura citados são conexos
aos crimes políticos já definidos?
Também não. O conceito de conexão entre crimes está previsto nas leis
processuais brasileiras. Há conexão
quando os crimes são praticados pelas mesmas pessoas, ou com a mesma
finalidade, ou se os delitos são praticados no mesmo contexto de tempo e
de lugar e a prova de um deles interfere na prova do outro.
Nada disso ocorre com os delitos
praticados por agentes da repressão.
Evidentemente, não são crimes cometidos pelas mesmas pessoas, ou
com o mesmo objetivo daqueles verdadeiramente políticos, contrários à
manutenção do regime. Também não
foram praticados no mesmo contexto
dos delitos dos opositores ao regime.
Os atos de tortura não ocorreram
no momento do crime político, no calor do combate. Foram ações sistemáticas, planejadas, regulares, realizadas sobre vítimas já detidas, sob a custódia dos agressores.
Não houve simultaneidade de
ações entre os crimes políticos e os
atos de tortura, logo, não há conexão
no sentido jurídico.
Assim, os atos de tortura e outros
praticados pelos agentes de repressão
não são crimes políticos nem crimes
conexos, mas crimes comuns, que
não comportam a anistia.
Qualquer entendimento contrário
impediria o STF de extraditar agentes
de repressão de governos ditatoriais
do mesmo período, de outros países,
que buscassem refúgio no Brasil.
A Constituição brasileira impede a
extradição por crimes políticos ou
por comportamentos que não seriam
puníveis no Brasil.
Ora, se definirmos que os crimes de
repressão são políticos ou conexos e,
portanto, impuníveis porque anistiados, não será mais possível a extradição desses agentes para que sejam julgados em seus países de origem.
Vale lembrar, porém, que o debate
sobre a Lei de Anistia não se confunde
com outra discussão, de idêntica importância: a prescrição dos crimes
praticados pelos agentes do regime
militar pelo decurso do tempo.
Há quem diga que não houve prescrição, porque tais atos são imprescritíveis. Há quem a reconheça diante do longo tempo passado entre tais atos e a efetiva punição.
Mas não é isso o que está em discussão! O que se debate no momento é se
a sociedade brasileira quis perdoar os
crimes dos agentes da repressão pela
anistia, independente da eventual
prescrição pela desídia do Estado em
punir tais comportamentos.
A OAB e a Associação dos Juízes pela Democracia, que postulam no STF
a interpretação restritiva da Lei de
Anistia, não buscam punição, vingança ou revanche. Não se acredita que a
incidência do direito penal terá o condão de reparar o sofrimento das vítimas, seus familiares, amigos e de toda a comunidade que acompanhou tais atrocidades.
Buscam apenas o reconhecimento
histórico de que a sociedade brasileira jamais compactuou com as práticas de um regime que limitou criminosamente a oposição e a liberdade
de expressão, mesmo que tais práticas não possam mais ser punidas
pela prescrição.
DALMO DE ABREU DALLARI, 78, é professor emérito da
Faculdade de Direito da USP. Foi secretário de Negócios
Jurídicos do município de São Paulo (gestão Erundina).
PIERPAOLO CRUZ BOTTINI, 33, mestre e doutor em direito pela USP, é advogado. Foi secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.
IGOR TAMASAUSKAS, 34, é advogado. Foi subchefe adjunto para assuntos jurídicos da Casa Civil da Presidência da República. (governo Lula).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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