São Paulo, quinta-feira, 17 de maio de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O dedo em riste do jornalismo moral

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Mais do que moral, acusar de imoral publicamente uma pessoa pública é ato político. Na medida em que a política, entre muitas coisas, consiste numa luta entre amigos e inimigos, ela pressupõe a manipulação do outro, desde logo suporta, portanto, certa dose de amoralidade. Não há política entre santos, mas já existe entre sábios, pois, embora devam discutir até o convencimento de todos, até chegar ao consenso e pronunciar uma verdade relativa, para isso precisam disputar recursos escassos, de sorte que alguns ficam privilegiados no processo de provar suas teses.
No entanto, é particularmente na democracia, quando os interesses gerais e comuns são discutidos até que se decida pela maioria, tornando legítima a ação executiva, que se percebe com nitidez sua zona cinzenta da amoralidade.
Na impossibilidade do consenso, a decisão se dá pelo voto. Isso implica obedecer a determinadas regras que asseguram a legitimidade do procedimento, tais como eleger representantes, garantir que a minoria possa vir a ser maioria, determinar prazos, ordem na apresentação das propostas, indicação de comissões e assim por diante.
Não há, porém, como impedir a manipulação desse regulamento, pois somente dessa maneira a regulamentação da criação de regras pode funcionar para regular a disputa entre amigos e adversários. Seria inútil se tudo pudesse ser decidido por consenso, mas no dissenso a regra que regula o exercício de outra regra necessariamente possui sua zona de indefinição.
O poder só se torna necessário quando se distribuem recursos escassos. Exerce poder o médico que, não tendo AZT suficiente, precisa eleger aqueles cujas vidas poderão ser prolongadas. Numa situação de abundância, isso seria desnecessário. Exerce poder quem distribui recursos escolhendo quais os primeiros e os últimos a receber verbas já aprovadas, mas que não podem ser liberadas no primeiro dia do ano orçamentário. Como não está administrando uma loja, mas exercendo o poder de contemplar alguns antes de outros (condição para que o benefício seja de fato distribuído), é insensato exercê-lo beneficiando o inimigo.
As leis guardiãs das leis que regem a "polis", para serem praticadas, requerem uma zona de amoralidade sem a qual não poderiam funcionar. Isso já no seu princípio, pois seus executores só podem existir a partir de uma particularidade. O deputado ou senador, prefeito ou governador, enfim o representante político encarregado de tomar decisões gerais, ele é um ser social particular cujas necessidades devem ser satisfeitas.
Por isso, se um indivíduo só vem a ser político mediante uma votação, não existiria política se os políticos não tratassem de vencer eleições, usando recursos disponíveis, inclusive manipulando as indecisões e falhas do regulamento. A efetivação de qualquer jogo competitivo sempre requer um espaço de tolerância para certas faltas.


As leis guardiãs das leis que regem a "polis", para serem praticadas, requerem uma zona de amoralidade
Essa indeterminação é condição para o exercício de qualquer regra. Lembrando uma imagem usada por Wittgenstein: se o êmbolo fosse rigorosamente ajustado ao oco do pistão, não haveria movimento possível. Isso faz com que, na política, não se possa regulamentar um órgão qualquer do Executivo, do Legislativo e do Judiciário sem que se arme um sistema de regras cujas zonas indefinidas não sejam usadas na luta pelo poder. São conhecidas as manobras de pedido de vistas, a disputa pela ordenação da pauta, as pressões para nomear um relator e assim por diante.
Numa democracia o eleitor está diante do dilema: ou deixa para outro escolher seu representante, que vai se imiscuir no jogo do poder, ou aceita a escolha com os riscos a ela inerentes. Mas ambos estão praticando a democracia como processo de decisão aceito pela maioria.
Sabe-se o preço a ser pago pela tentativa de abolir essa zona de indefinição, ela resulta na ditadura ou no jacobinismo. Ser democrático é, pois, conviver com esse risco. Mas querer a democracia implica admitir que o jogo democrático é tanto deliberativo quanto decisionista; de um lado, reconhecer a necessidade da discussão procurando o consenso, de outro, o exercício do poder antes do saber, correr o risco de que o representado como sendo válido e bom para todos se mostre inválido e prejudicial.
Somente assim a decisão é tomada e o adversário, derrotado, pois, se a política é jogo, a partida não está determinada de antemão. Daí ser preciso diferenciar o juízo moral na esfera pública do juízo moral na intimidade, pois são diferentes suas zonas de indefinição. No primeiro caso, o juízo moral se torna inevitavelmente arma política para acuar o adversário e enaltecer o aliado, de tal modo que a investigação da verdade fica determinada por essa luta visando a vitória de um sobre o outro.
Desde Platão o político é acusado de ser camaleão, de viver da aparência, de precisar mais aparecer do que ser. Quando o aparecer é mero reflexo do ser, não existe política possível. Por isso Platão, adversário da democracia, imaginava a "polis" sendo regida por um filósofo. Mas é totalmente imoral ao mesmo tempo querer a democracia e igualmente querer a transparência de todas as manifestações da ação coletiva, posto que age imoralmente quem, sabendo que a ação resulta em consequências indesejáveis, acusa o outro como responsável por essa situação.
É possível, todavia, contra-argumentar: o político precisa ser crível, não posso votar em quem vai me enganar. Essa contradição se resolve no processo da democracia, em primeiro lugar porque a aparência de credibilidade vai sendo testada pela coerência da ação do político e da reação do representado. A mulher de César há de ser e de aparecer honesta, mas se não for honesta do ponto de vista da aparência não terá credibilidade política; vale dizer, deixará de ser representante política.


Acusar o inimigo de imoral é arma política, instrumento para anular o ser político do adversário
Em segundo lugar, porque acusar o inimigo de imoral é arma política, instrumento para anular o ser político do adversário. Mas a moeda política se gasta caso usada indiscriminadamente; também ela deixa de ser crível. Daí a importância da mobilização da opinião pública na determinação da linha de tolerância entre o que o político deve e não deve fazer.
No Brasil, tempos atrás, era possível aceitar um político que roubava mas fazia. Graças à melhoria de nossa democracia isso não é mais possível. Cada vez mais tendemos a aceitar a regra de que o político, devendo se aventurar na zona da amoralidade, pague quando ultrapasse os limites sociais da tolerância.
Compreende-se a responsabilidade da mídia nesse processo. Ela deve enunciar os fatos do ponto de vista de sua diferença e de sua verdade. Mas, como isso se faz por meio de empresas capitalistas, cuja existência depende da obtenção de lucros, deve ainda corresponder a certas expectativas de seus leitores.
Sob esse aspecto, a função crítica do jornalista também é contraditória, pois visa o público necessitando garantir o interesse privado. Mas, enquanto o político se arrisca para fazer da matéria social amorfa um fato verdadeiro, o jornalista se arrisca para fazer da verdade uma crença social. A mídia, se de um lado é guardiã da moralidade pública, de outro, por ser empresa, tende a imaginar que seu ponto de vista privativo se identifique com o ponto de vista geral.
Um partido, ao negar-se como particular, é levado a minar a existência legítima de outros e, por isso, se identifica com o Estado; por sua vez, um órgão da mídia que se pensa como único instrumento da moralidade pública tende a virar partido. Na distância entre o que ela é empresa particular e guardiã da normatividade pública, entre sua particularidade e sua universalidade, infiltra-se uma contradição, que também se resolve no processo.
O leitor e o telespectador devem crer na possível universalidade da informação, isto é, sua capacidade de resistir a contraprovas. Se um jornal não mais aparecer crível deixará de existir como empresa, embora possa estar tão correto como uma revista científica. Em contrapartida, se tender a enunciar juízos morais fora da realidade de risco onde se move o objeto julgado, torna-se igreja, pois atos políticos lhe aparecem marcados pelo pecado original.
É obrigação da mídia informar os fatos no seu nível de realidade. Não cabe contar o enredo de uma peça como se fosse fato real, muito menos um fato político como se fosse obra de santos. Por certo, cabe-lhe o dever de zelar pela moralidade pública; deixa, porém, de ser democrática quando recusa ao fato político sua necessária aura de amoralidade. Quando um jornalista o expõe do ponto de vista de sua total transparência, destrói o caráter político desse fato e transforma sua informação em arma política a serviço de interesses totalitários.
Quem dá uma informação não é responsável pela imoralidade dela, mas se responsabiliza pelo tipo de realidade que empresta ao fato descrito. Perde credibilidade ao confundir os níveis do real. Comporta-se como o paciente que, depois de consultar seu urologista, ou a paciente seu ginecologista, se sentisse violado e saísse denunciando a imoralidade da medicina.
O sentido do gesto não reside no seu uso, por conseguinte, no foco visado por ele mas igualmente na zona cinzenta que permite a concentração da luz? A plenitude da luz não permite a visão.


José Arthur Giannotti, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras) e escreve mensalmente para o caderno Mais!.


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