São Paulo, Quinta-feira, 17 de Junho de 1999
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Saulo, por que me persegues?


A repetição de decisões idênticas dos tribunais não seria geradora de desigualdades reais entre pessoas perante a lei?


ALOYSIO NUNES FERREIRA

O doutor Saulo Ramos jamais abdicou de intervir na discussão pública, em benefício da qualidade do debate. Seus artigos são uma fonte de prazer intelectual -e um suplício para suas vítimas. Ele vem aureolado de justificada fama de advogado. Vem com o prestígio de quem ocupou, com honra, o cargo de ministro da Justiça. Vem armado com sua ironia demolidora.
Pois esse misto de tanque de guerra e espadachim resolveu desancar-me a propósito da reforma judiciária (Opinião, pág. 1-3, 9 de junho). Logo eu, que, de boa-fé, pensei ter recolhido as lições que ele ministrou perante os deputados que na legislatura passada tentaram, em vão, reformar a Justiça. Senti-me na pele de um coríntio escarmentado por Paulo porque seguiu a epístola de Paulo aos coríntios. Superada a perplexidade, vamos à resposta.
A tarefa é difícil: em seu destampatório, o dr. Saulo abusa da caricatura. Como essa de atribuir-me o propósito de extinguir a jurisdição trabalhista. Não é digna de seu espírito público a defesa de uma estrutura de desperdícios, com tribunais pelos quais se arrastam durante anos demandas que poderiam ser resolvidas em semanas nos juizados especiais, o que preconizo. O mais talentoso de meus críticos faz pouco caso de minha luta para impedir que o órgão de controle da magistratura degenere em foco de poder político e corporativo. O requisito de relevância para recursos extraordinários, proposto há mais de três décadas por Victor Nunes Leal, visando evitar sua banalização, é apresentado por ele como negativa da Justiça. Como se antes desses recursos já não se houvesse exaurido pelo menos o duplo grau de jurisdição, com um juiz da causa e um tribunal de apelação!
Por vezes, seu mal é o exagero: ele assimila os incidentes de constitucionalidade e de ilegalidade, que sugiro, com "a ditatorial e odiosa avocatória". Nada a ver, mestre Saulo! Onde, na avocatória, o único legitimado para pedir a intervenção do Supremo era o procurador-geral da República, eu proponho o amplo leque dos titulares das ações diretas de inconstitucionalidade -que vai do presidente aos partidos e, no caso do incidente de ilegalidade, ao próprio juiz ou ao tribunal de jurisdição ordinária. Onde, na avocatória, o pressuposto era o perigo de lesão à ordem e à segurança, à saúde e às finanças públicas, eu aponto os graves e frequentes dissídios entre órgãos do Judiciário. Onde, na avocatória, o STF subtraía ao juiz natural o conhecimento integral da causa, limito o papel dos tribunais superiores ao julgamento da questão jurídica controvertida, retomando o andamento dos feitos a partir daí.
Agora, reconheço que a crítica do dr. Saulo concentrou-se no cerne de minha proposta no que se refere aos contornos políticos de um Judiciário republicano. Refiro-me ao equilíbrio entre dois valores frequentemente contrapostos, o pluralismo e a segurança jurídica, a presidir a relação entre a jurisdição ordinária (primeiro e segundo graus) e a extraordinária (Supremo, STJ) na afirmação da Constituição e da lei federal. Assumo a responsabilidade política de propor uma nova inflexão em nosso sistema de controle de constitucionalidade, na busca de maior eficácia das decisões dos tribunais de cúpula: sua descentralização exacerbada descamba para o caos judiciário, contrário ao interesse público. A pletora da atividade normativa em todos os níveis da Federação, o caráter detalhista da Carta, o alargamento da arena judiciária (mediante o ingresso de novos atores, com suas ações civis públicas e demandas coletivas), a transferência para o Judiciário dos conflitos políticos -tudo isso recomenda a revisão dos dogmas do controle difuso tradicional.
Assim, num contexto em que a decisão de um único magistrado vai muito além da composição de um litígio entre indivíduos para alcançar a vida de milhões de pessoas, de coletividades inteiras, pode-se permitir o prolongamento indefinido de controvérsias judiciais? Em que medida a repetição de decisões idênticas dos tribunais interessa à sociedade? Não seria uma situação geradora de desigualdades reais entre pessoas perante a lei? Por que razão, por exemplo, subtrair-se à cobrança de um tributo instituído por lei inconstitucional deve ser privilégio do contribuinte que conseguir chegar ao STF, quando a decisão obtida por ele poderia beneficiar todos? O dr. Saulo Ramos terá para essas questões respostas melhores do que as minhas: sou todo ouvidos!


Aloysio Nunes Ferreira Filho, 54, advogado, é deputado federal pelo PSDB de São Paulo e relator do projeto de reforma do Poder Judiciário na Câmara. Foi vice-governador do Estado de São Paulo (1991-94).




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