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São Paulo, quinta-feira, 17 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O STF e a diversidade racial

FLAVIA PIOVESAN

No último dia 23 de junho, a Suprema Corte dos EUA decidiu pela constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, ao julgar caso da Universidade de Michigan em que se questionava o sistema de admissão da Faculdade de Direito orientado ao favorecimento de minorias raciais. A Faculdade de Direito de Michigan tem 3.500 candidatos para 350 vagas. Sem a adoção das ações afirmativas, os negros comporiam 4% do corpo de alunos, ao passo que, com as ações, passam a compor 14,5%. A decisão irradiará impacto para situações semelhantes em escolas particulares e no mercado de trabalho.
No Brasil, as políticas afirmativas serão ineditamente julgadas pelo STF, em virtude de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Confenen (Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino), que tem por objeto a lei estadual do Rio de Janeiro que fixa o sistema de cotas para afrodescendentes em universidades públicas. A decisão do STF, na medida em que terá alcance geral, obrigatório e vinculante, exercerá impacto no destino e futuro das ações afirmativas na experiência brasileira.
Diversamente dos EUA, no Brasil o tema é ainda inovador. As ações afirmativas em favor dos afrodescendentes passaram a compor a agenda política nacional especialmente com a Conferência da ONU contra o Racismo, Xenofobia e Outras Formas de Intolerância, em Durban, realizada em setembro de 2001. O documento oficial do Estado brasileiro na conferência defendia a adoção de tais políticas no trabalho e na educação. Após Durban, as primeiras iniciativas de ação afirmativa foram desenhadas no Brasil, por exemplo, por meio de decreto de 13 de maio de 2002, que criou no âmbito da administração pública federal o Programa de Ação Afirmativa, bem como por meio de iniciativas no plano educacional, com a adoção de cotas para afrodescendentes em universidades dos Estados da Bahia, Rio de Janeiro e, recentemente, na UnB.
O que justificaria a adoção das ações afirmativas para afrodescendentes no sistema educacional de nosso país? Por que defender a política de cotas para afrodescendentes nas universidades brasileiras? Três são os argumentos que sustentam a necessidade de tais medidas no caso brasileiro.


As ações afirmativas simbolizariam medidas compensatórias, destinadas a aliviar o peso de um passado discriminatório
O primeiro deles refere-se à própria exigência de uma educação voltada para valores e para a promoção da diversidade étnico-racial. Se o objetivo maior do processo educacional é o pleno desenvolvimento da personalidade humana, guiado pelo valor da cidadania, do respeito, da pluralidade e da tolerância, afirma-se como absolutamente legítimo o interesse da universidade em promover a diversidade étnico-racial, o que se traduziria em mais qualidade e riqueza do ensino e da vivência acadêmica, contribuindo, ainda, para a eliminação de preconceitos e estereótipos raciais.
O segundo argumento é de ordem político-social. Se se pretende uma sociedade mais democrática, com a transformação de organizações, políticas e instituições, o título universitário ainda remanesce como um passaporte para a ascensão social e para a democratização das esferas de poder, com o "empoderamento" dos grupos historicamente excluídos. Para ampliar o número de afrodescendentes juízes, advogados, procuradores, médicos etc., o título universitário é essencial. Acentua-se, ainda, que os afrodescendentes constituem menos de 2% dos estudantes nas universidades públicas brasileiras, embora sejam 45% da população do país.
A pirâmide dos estudantes universitários brasileiros aponta na sua base os negros provenientes das escolas públicas, seguidos dos brancos das escolas públicas, por sua vez seguidos dos negros de escolas privadas e tendo em seu ápice os brancos de escolas privadas. As ações afirmativas, enquanto medidas especiais e temporárias, simbolizariam medidas compensatórias, destinadas a aliviar o peso de um passado discriminatório. Significariam, ainda, uma alternativa para enfrentar a persistência da desigualdade estrutural que corrói a realidade brasileira. Além disso, permitiriam a concretização da justiça em sua dupla dimensão: redistribuição (mediante a justiça social) e reconhecimento de identidades (mediante o direito à visibilidade de grupos excluídos).
Por fim, há o argumento jurídico, pois a ordem constitucional, somada aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil, acolhem não apenas o valor da igualdade formal, mas também da igualdade material. Reconhecem que não basta proibir a discriminação, sendo necessário também promover a igualdade, por meio de ações afirmativas. Além disso, a Constituição de 1988 estabelece o princípio do pluralismo no campo do ensino e consagra, como objetivo fundamental da República, a construção de uma sociedade justa e solidária, com a redução das desigualdades sociais -o que confere lastro jurídico aos demais argumentos já expostos.
Se, ao longo de nossa história, para os grupos vulneráveis a raça sempre foi um critério de exclusão, que seja hoje um critério de inclusão da população afrodescendente. Ao STF cabe o desafio de consolidar e fortalecer esse avanço emancipatório: afirmar os valores da diversidade, dignidade e inclusão social, permitindo a metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos, na construção de uma sociedade mais aberta, plural, igualitária e democrática.

Flavia Piovesan, 34, professora de direitos humanos do Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, é procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.


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