São Paulo, sexta-feira, 17 de julho de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES


Gastos e investimentos

LUIZ EUGÊNIO MELLO


Além da saúva, os males do Brasil incluem a visão de que investimentos em C&T são gastos. Enquanto isso não mudar, pouca coisa mudará


INFORMOU O governo que cortará gastos. Ato contínuo, uma das principais agências que definem a qualificação de países em termos de riscos aos investimentos de capital indicou que a nota do Brasil pode subir. Provavelmente é verdade. Estamos fazendo a coisa certa. Afinal de contas, se a nota do Brasil se elevará para "investment grade" por causa daquelas informações ou sob o peso delas, é porque deve ser o certo.
Tão interessante essa sequência. Rapidamente se esquece dos sábios da economia mundial, que, diante de suas poções mágicas, não previram o cataclismo que se abateu sobre a economia, ampliando para mais de 1 bilhão os famintos. Esquecimentos convenientes adicionais se estabelecem para aqueles que fazem coro às manifestações desses que não sabem distinguir gastos de investimentos.
No mesmo dia da publicação de estudo do Ipea mostrando a baixa absorção de doutores pela indústria no país, o ministro Guido Mantega (Fazenda) anunciou a intenção de ajustar gastos ministeriais, adequando-os à realidade. De fato, difícil contestar essa lógica. Ninguém em sã consciência defende que gastemos mais do que recebemos.
Ter dívidas financeiras é péssimo. Todos que caíram no cheque especial sabem da arapuca e de como é duro dela se desvencilhar. Onde, então, reside minha discordância do corte de gastos proposto pelo governo? Como isso se relaciona com a menor absorção de doutores pela indústria? O que tem tudo isso a ver com os demais países "desenvolvidos" em que nos espelhamos? O cataclismo econômico abateu-se sobre todos, indistintamente. Pobres e ricos, doutores e analfabetos.
Em nossos colegas do Norte (assim como no Sul), um levantamento das propostas orçamentárias por país, já revistas após a hecatombe, mostra que os dispêndios com ciência e tecnologia (C&T) vão aumentar neste ano em relação ao anterior. Destaco que vão aumentar. Nesses países, como EUA, Alemanha e praticamente todos os demais "grandes", cortes não estão no cenário. Ao contrário.
Sobre essa nossa perspectiva (no Brasil), escreve-me um colega cientista: "Lamento ouvir essa infelicidade. Um corte de 18% é certamente dramático, e não me recordo de precedentes equivalentes na Europa. De fato, na Noruega os planos consideram uma ampliação dos gastos em ciência. A expectativa é que o aumento da inovação possa compensar as perdas daqueles empreendimentos que se enfraqueceram economicamente. Lembro que, na Finlândia, no período logo após a dissolução da União Soviética, a ampliação do financiamento à ciência foi um dos elementos de sua receita de sucesso."
Para nossos economistas, no entanto, esses fatos do mundo parecem pouco interessantes. A distinção entre gastos e investimentos não é relevante. Na verdade -e para ser justo-, a consideração de que os recursos aplicados em C&T são investimentos parece não ter percolado as profundezas da sapiência econômica nacional. De fato, em um país em que luminares da economia repetiam até pouco tempo atrás que tecnologia "não precisamos desenvolver, podemos comprar", C&T parece perfumaria de lojinha da esquina.
Felizmente, esses tempos ficaram no passado. Parece claro aos dirigentes que ações de longo prazo com retorno certo devem ser priorizadas. Inclusive, por essa razão, considerou-se a importância dos investimentos da Petrobras, incluindo bilhões em pesquisa e desenvolvimento. Por isso, a empresa, ainda que estatal, foi habilmente isolada das contas do governo.
Talvez a ausência de doutores na indústria (segundo o Ipea, menos de 2% daqueles formados nos últimos anos), talvez a escassez de laços entre academia e indústria, talvez a falta de visão estratégica na formulação de uma política de longo prazo, talvez o pesado silêncio dos cientistas diante dos sucessivos mandos e desmandos da área econômica, talvez tudo isso junto, aliado à juventude de nosso parque de C&T, é que perpetue essa visão míope de que dispêndios em C&T são gastos.
Não são. Devem ser vistos como investimentos. Não somos grandes exportadores de commodities por acaso. Foram T&I que nos deram essa vantagem competitiva. Sem C&T, nem commodities vamos exportar no futuro.
Emprego, salário e renda, acho que brotam do chão. Sustentabilidade, melhores práticas, inovação, acho que subitamente surgem numa inspiração divina. Devo acrescentar que, além da saúva, os males do Brasil incluem a visão de que investimentos em C&T são gastos. Enquanto isso não mudar, pouca coisa vai mudar.

LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, 51, é professor titular de fisiologia da Universidade Federal de São Paulo e presidente da Federação das Sociedades de Biologia Experimental.


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