São Paulo, domingo, 17 de julho de 2011

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Hospital das Clínicas, sempre incomparável

MIGUEL SROUGI


Embora às vezes o HC seja imperfeito, asseguro que a grande maioria dos seus membros se compromete a tornar a nação menos desigual


Recentemente, jornalistas, promotora e até um médico mais distante denunciaram imperfeições rondando o Hospital das Clínicas de São Paulo (HC), o que ecoou intensamente, dada a lucidez ou a notoriedade desse grupo.
Entre outras coisas, apontaram um pretenso plano de seus gestores e do governo do Estado para privatizar o HC, transformando-o em centro de assistência para clientes particulares ou conveniados, em detrimento da saúde da população mais carente do SUS.
Também satanizaram o dr. Marcos Fumio Koyama, superintendente do HC, que, mal interpretado, foi acusado de planejar aumento de 3% para 12% o número de leitos destinados aos convênios.
Mesmo reconhecendo a pertinência dessas preocupações numa nação tomada pela ganância, fiquei desconcertado com as acusações. Em primeiro lugar, quero ser enfático. Não existe sequer um membro da instituição, incluindo seus gestores, que tenha defendido, ontem ou hoje, a transformação do HC em local para atendimento preferencial de pacientes da rede privada ou conveniada.
A verdade é que, pela sua excelência médica, convergem para o HC, a cada mês, centenas de milhares de brasileiros vivendo nos limites extremos do sofrimento e que lá são resgatados para a vida.
Por esse motivo, o HC transformou-se em razão existencial para a maioria de seus membros. Maioria que atua sem interesses materiais (um médico recebe no início da carreira R$ 1.548 por meio dia de trabalho) e que lá permanece pelo orgulho de fazer parte da instituição.
Em segundo lugar, existe um reconhecido subfinanciamento da saúde no Brasil, o que penaliza os hospitais públicos. Enquanto os países mais decentes destinam entre 8% e 14% do seu PIB para a saúde, o governo brasileiro investe nessa área menos de 3%. Para agravar, os parcos recursos são frequentemente desviados pela má-fé de grupos predadores no poder.
Alguns números ilustram a tragédia. Numa cirurgia de apendicite e três dias de internação, o HC despende R$ 2.605, mas recebe R$ 414,02 do SUS. Por causa dessa distorção, e carregando quase 2.400 leitos, o HC encerra cada ano com deficit de mais de R$ 100 milhões.
Convivendo com a carência e com uma demanda incontrolável de pacientes, os membros da instituição passam a protagonizar uma coreografia insana. Somente no setor de urologia do HC há 892 pacientes aguardando cirurgia, incluindo 153 crianças.
Em terceiro lugar, não há nenhum plano para aumentar o número de leitos destinados a convênios. Entre 8% e 20% dos pacientes atendidos têm direito a convênios e a ele recorrem pela sua excelência.
Aproveitando-se desse sentimento, os convênios despejam no HC os doentes mais complexos e onerosos. Em atitude oportunista e injusta, ressarcem o hospital em menos de 3% dos casos.
O que o dr. Marcos Fumio tem defendido é a formalização de convênios, de modo a propiciar ao HC os recursos que lhe são devidos e que poderiam amenizar a injustiça.
Termino referindo-me a uma realidade que Riobaldo, o jagunço-filósofo de Guimarães Rosa, soube descortinar: "Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor".
Reconheço que as inquietações expressas recentemente são justificadas para quem sente de fora.
Mas, como um dos que sente de dentro, asseguro que a grande maioria dos membros do HC está comprometida com o respeito à condição humana e com a construção de uma nação menos desigual.
E quero enfatizar que dirigir ao HC acusações injustas pode produzir desalento irremediável numa instituição que representa uma das últimas esperanças de atendimento digno e competente para os mais desprotegidos da nossa sociedade.

MIGUEL SROUGI, médico, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical School (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do conselho do Instituto Criança é Vida.


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