São Paulo, sexta-feira, 17 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

No divã

EDUARDO GRAEFF

Curioso o cotejo que a psicanalista Betty Milan fez aqui entre Marta Suplicy e José Serra, dia 30 último, com base em artigos que eles publicaram nesta mesma página uns dias antes ("Marta x Serra", pág. A3). Curioso e preocupante, na verdade.
Num tom grave de exegese (política? literária? psicanalítica?), a doutora Milan fez o óbvio em tempo de eleição: encheu a bola da candidata de sua preferência, a prefeita Marta, e alfinetou o principal adversário dela, José Serra.
Até aí tudo bem. O que me intrigou e depois preocupou foi o ângulo que a doutora escolheu para fazer isso. Marta usou este espaço da Folha para falar das obras que fez e das que promete fazer na cidade. A doutora leu aí a manifestação convincente de uma personalidade afirmativa, pragmática, que tem um programa de ação, do jeito que São Paulo precisa. Serra defendeu a liberdade de imprensa contra as medidas cerceadoras do governo Lula. Diagnóstico da doutora: preocupação redundante, pois já manifestada pela imprensa, dissociada dos problemas urgentes da cidade e, por isso, descabida da parte de um candidato a prefeito.
Se o meu ângulo fosse basicamente eleitoral, seria melhor ficar fora dessa discussão. Alguém aqui vai mudar ou deixar de mudar de voto porque leu que a doutora Milan achou "arrebatadora" a promessa do CEU Saúde da prefeita? Ou que ela considera um exemplo de modernidade a relação cordial que a prefeita mantém com o ex-marido? Marta e o senador Suplicy agradecem a gentileza, suponho. Mas, para efeito de votos, a prefeita conta mesmo é com Duda Mendonça, que já tratou dos dois assuntos -saúde pública e vida conjugal da prefeita- no horário eleitoral do rádio e da televisão.


Receio que a horta da nossa democracia não ande assim tão bem regada nos últimos tempos


Serra também não corre grande risco eleitoral porque a doutora Milan disse que ele "choveu no molhado" ao defender a liberdade de imprensa. Ao contrário da doutora, porém, receio que a horta da nossa democracia não ande assim tão bem regada nos últimos tempos para dispensar uma gota de apoio de seja quem for.
Desde que o caso Waldomiro Diniz estourou, em fevereiro passado, multiplicaram-se as perguntas inquietantes sobre a lisura dos métodos que o PT usou para arrecadar fundos em municípios e Estados que governou e, pior, se os mesmos métodos estariam se instalando no governo Lula. Na esteira disso, a imprensa e, em escala bem menor, a mídia eletrônica perderam um pouco a cerimônia em relação a Lula e subiram o tom da crítica em geral ao PT e seu governo.
O governo e a direção do PT poderiam ter desanuviado o ambiente, assimilando as críticas com tranqüilidade, submetendo-se ao contraditório e facilitando o escrutínio público dos fatos e indícios realmente graves. Em vez disso, optaram por se defender atacando. Acusaram a oposição de estar "brincando com o perigo" ao propor investigações no Congresso. Arreganharam os dentes para jornalistas e membros do Ministério Público. Depois saíram com esse pacote de medidas cerceadoras: mordaça nos procuradores; mordaça nos servidores públicos; conselho sindical para "orientar, fiscalizar e disciplinar" jornalistas e o jornalismo; autarquia para exercer o controle "cultural" dos meios de comunicação audiovisuais; afrouxamento do controle do Judiciário sobre a quebra de sigilo bancário por órgãos federais.
Culminando, no meio de esforços agônicos para melar a CPI sobre evasão de divisas, começam a circular rumores de que dossiês extraídos ilegalmente do acervo da comissão estariam sendo usados para chantagear e intimidar empresários e políticos.
É pouco? Acho que não. A doutora Milan que me perdoe se eu também, para o gosto dela, chovi no molhado, mas o retrospecto dos fatos até aqui é muito, muito preocupante. E os possíveis desdobramentos ainda mais.
Como é que o Congresso vai deliberar nesse clima acirrado de desconfiança? Dá para esperar da oposição, daqui por diante, a mesma boa vontade sobre projetos importantes que ela mostrou no primeiro ano do governo Lula? O fracasso do "esforço concentrado" em agosto mostrou como pode ser difícil para o governo, apesar de sua maioria nominal, movimentar a pauta sem um mínimo dessa cooperação.
E se o exemplo de cima espalhar o acirramento para baixo pelas estruturas partidárias e do próprio Estado? Em Porto Alegre há jovens militantes do PMDB e um pobre cozinheiro no hospital, atacados por uma brigada petista. Em São Paulo houve um incidente parecido na zona leste, felizmente sem conseqüências tão graves. Em Contagem, Minas Gerais, uma equipe da Polícia Federal e um grupo de militantes do PT co-protagonizaram cenas de gorilismo explícito contra um jornal.
Preocupa-me sobretudo o risco de que, na falta de defesas eficazes nas instituições políticas e na sociedade, os sinais de deterioração continuem se avolumando até desaguar numa crise política grave. Ou, pior, na configuração de uma "democradura" -um híbrido semelhante, mas com viés histórico oposto, à "ditabranda" do general Geisel.
Estou vendo fantasmas? O silêncio envergonhado ou a desconversa de próceres do PT e áreas próximas me dizem que não. E a lentidão da própria oposição para acordar para o problema me dá, confesso, um nervoso danado.
Pronto, entreguei-me. Antes que a doutora Milan mande me internar, eu pediria a ela e a qualquer um de plantão o conforto de uma palavra clara contra esses desmandos, a favor das liberdades democráticas.

Eduardo Graeff, 54, sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique.


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