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Cinismo militante
Em alguns setores do lulismo, descompromisso com a ética na política passa do campo da prática para o da teoria
SUPERADAS as reações iniciais de surpresa e desencanto, que tomaram conta do petismo ao eclodir a
crise do mensalão, um espantoso
e célere processo de readaptação
moral está em curso. Partem de
setores expressivos da militância
os argumentos de que, na luta
política, é inevitável conviver
com a "sujeira" -ou coisa pior.
Um passo além, e já se registram manifestações de que a
própria questão da ética na política é secundária, face aos supostos benefícios que um governo,
mesmo corrupto, seria capaz de
garantir à população mais pobre.
Como nos mais típicos casos
de ginástica mental da época stalinista, há quem considere agora
puro "moralismo de classe média" os princípios que, em outros
tempos, serviam de pretexto ao
PT para arrogar-se um papel renovador na política brasileira.
A leniência ética estendeu-se,
assim, da esfera da prática para o
campo da teoria. A tal ponto chegou a desonestidade intelectual
de alguns setores da militância,
que ouviram do próprio presidente Lula uma arrevesada e singular advertência.
"O PT foi construído para ser
um símbolo de que era possível
fazer política diferente", declarou em meio a uma aguada entrevista ao "Jornal da Band", na
quinta-feira. "De repente, eu vejo que algumas pessoas do PT enveredaram pelo mesmo círculo
vicioso da política brasileira".
Esqueceu-se de dizer, por certo, que tinha sido o primeiro a argumentar, numa patética entrevista em Paris, que seu partido
nada mais fizera a não ser o que
todos os demais faziam. Condutor da "virada pragmática" que
encaminhou governo e partido
ao pântano do valerioduto, quis
refrear agora o ânimo dos que
são mais realistas do que o rei e
mais caudilhistas que o caudilho.
Ao cinismo teórico dos que antes se diziam detentores da ética
na política, contrapõe-se a hipocrisia dos que, agora, indignam-se nos palanques ao verem magnificada a herança que contribuíram para formar. A compra de
votos para aprovar a emenda da
reeleição, no governo Fernando
Henrique, constituiu um ensaio,
ainda tímido, do grande baile dos
mensaleiros no Congresso.
O próprio instituto da reeleição teve como conseqüência a
promiscuidade, que agora se
condena, entre atos administrativos e manobras de campanha.
O recurso a medidas eleitoreiras
pelo governo Lula teve no populismo cambial do primeiro governo FHC um precedente e um
exemplo dos mais graves. E, se
escândalos de dimensão inédita
varreram o governo atual, não se
sabe o que teria acontecido com
o anterior se tivessem sido instauradas as CPIs que PSDB e
PFL se empenharam em barrar.
O espetáculo oscila do ridículo
ao deprimente e parece dar alguma razão a quem afirma que todos, afinal, se indiferenciam do
ponto de vista ético. Mas que de
uma avaliação da realidade se deduza um princípio de conduta, e
que do "rouba, mas faz" se passe
ao "rouba, mas é de esquerda"
-eis uma aberração que, décadas depois de Lênin, Stálin,
Trótski e Mao, reveste de tons de
farsa a tragédia, que se esperava
extinta, da cegueira militante.
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