São Paulo, quinta-feira, 17 de setembro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES


A construção da urbanidade em São Paulo

FERNANDO DE MELLO FRANCO


As alternativas que o governador solicita existem e podem ser facilmente encontradas por aqueles que as promovem


EM RECENTE reportagem sobre a Nova Marginal ("Para Serra, ampliação minimiza erro de projeto de 50 anos atrás", Cotidiano, 10/ 9), o governador José Serra responde aos críticos dessa obra com as seguintes perguntas: "Qual é a proposta deles? Destruir as marginais? E o pessoal vai andar de burrinho para ir até Guarulhos?".
Não há dúvida de que as tropas de mulas foram fundamentais para nossa história. Ampararam as incursões coloniais que desbravaram nossa hinterlândia. Permitiram transgredir o Tratado de Tordesilhas, o que resultou na formalização do território nacional em sua dimensão continental.
Mas se trata de alternativa anacrônica, assim como também o é a promoção do sistema de transporte individual, baseado em energias poluentes.
É sintomático que a resposta do governo venha pela assessoria da Dersa, empresa de desenvolvimento rodoviário cuja missão não é promover urbanidade. Todos sabemos quão nocivas são as rodovias quando implantadas no interior do tecido da cidade.
E essa parece ser parte da questão: pensar as marginais como sistema rodoviário, sem olhar para o fenômeno metropolitano como um todo.
A agenda para o século 21 é outra.
Diante dos crescentes problemas ambientais, do incremento da mobilidade e da consolidação de nossa condição urbana, é necessário pensar outros modelos para a cidade.
Neste ano, a Universidade Harvard promoveu o seminário "Ecological Urbanism". A proposta era expandir as discussões sobre sustentabilidade, até então focadas na eficiência energética das edificações, para os modelos de urbanização. O debate reforçou a defesa do adensamento em oposição à dispersão e o fomento dos sistemas coletivos de transporte em oposição ao sistema individual.
Esse é um modelo conhecido em São Paulo. Em seu livro "A Estruturação da Grande São Paulo", o geógrafo Juergen Langenbuch explica a modernização da metrópole a partir do trinômio "ferrovia, abundância de água, terrenos planos e baratos", que indicou as várzeas da "bacia de São Paulo" como território estratégico para a lógica industrial.
Até sermos submetidos à hegemonia do sistema rodoviário, a urbanização metropolitana estruturou-se pelo adensamento em torno das polaridades definidas pelas estações do sistema ferroviário.
Naquele momento, a linha do Tramway de Santo Amaro passava por onde hoje é o aeroporto de Congonhas, assim como o Tramway da Cantareira, com múltiplos ramais, ligava o centro da cidade ao Campo de Marte e à base aérea de Guarulhos, onde hoje se instala Cumbica.
Melhor modelo já existiu, portanto.
É preciso saber avançar no enfrentamento das questões trazidas pela contemporaneidade, em vez de permanecer no erro histórico do modelo de avenidas de fundo de vale.
Vivemos um momento especial na história das cidades. A "cidade moderna" cede espaço para a "cidade contemporânea", permitindo-nos pensar a mudança.
No caso de São Paulo, ela pode ser feita, estrategicamente, sobre a atualização das formas de uso da estrutura complexa das suas várzeas.
Os 270 km de trilhos urbanos preexistentes, a escassez de recursos hídricos e a disponibilidade do vasto parque fabril subutilizado demandam outro equilíbrio entre as diversas forças que disputam o território.
O Pitu (Plano Integrado de Transportes Urbanos) é um importante começo. Ao articular todas as modalidades de transporte, oferece as bases para o avanço. Ele indica que as áreas adjacentes aos trilhos urbanos são algumas das áreas de menor densidade habitacional de São Paulo.
A dinamização do sistema pressupõe, consequentemente, a prioridade dos investimentos. Pois, além de amparar o adensamento, oferece alta capacidade e não é poluente.
Há um acervo valiosíssimo de reflexões acadêmicas produzido pela USP, entre outras universidades. Esse acervo é enriquecido pelas pesquisas financiadas pelos órgãos de fomento, como a Fapesp. Há ainda os registros do "Urban Age", evento que contou com o apoio oficial do Estado. O resultado foi a publicação, pela Imprensa Oficial, da pesquisa que a London School of Economics vem realizando sobre nosso futuro urbano.
Nesses textos, o debate se afasta da manutenção do sistema "rodoviarista" como solução responsável.
Portanto, as alternativas que o governador solicita existem e podem ser facilmente encontradas por aqueles que as promovem.
Essa constatação nos sugere propor uma questão como resposta: qual o melhor caminho para fazer articular o pensamento crítico, financiado pelas instituições públicas, com as ações efetivas do Estado?


FERNANDO DE MELLO FRANCO , 45, é arquiteto e doutor pela FAU-USP. Recebeu o primeiro prêmio na 3ª Bienal Internacional de Roterdã (Holanda) com uma investigação de projeto sobre os piscinões em São Paulo.

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