São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Com a cabeça fria

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

É muito difícil, em plena campanha eleitoral, manter a cabeça fria e pensar a política com alguma isenção. Mas cabe àqueles que se dizem intelectuais (orgânicos ou inorgânicos) continuar tentando vencer esse desafio, evitando assim que eles próprios se confundam com políticos profissionais.
Na última entrevista que dei a esta Folha (Brasil, pág. A14, 26/9/04), tentei mostrar como o projeto político do PT, tal como ele o tem desenvolvido, carrega ameaças ao jogo democrático. Não trata de aparelhar o Estado com seus próprios militantes em prejuízo do fortalecimento de uma burocracia estável? Na compra e venda de votos no Congresso, não termina por ameaçar a boa institucionalização dos partidos?
Não adianta contra-argumentar que a política é isso mesmo, que está entranhada pela corrupção e assim por diante. Em primeiro lugar, porque existe diferença enorme entre, de um lado, aliar-se a um político nefasto, na base da usual troca de indulgências, e, do outro, aliar-se a outro político tão nefasto procurando retardar que ele seja indiciado pela Justiça. Neste caso, instituições são enfraquecidas quando a força da democracia depende precisamente de mecanismos de controle capazes de respeitá-las. Se assim não fosse, não teria valido todo o esforço para retirar Fernando Collor do poder e investigar as contas de PC Farias.


No primeiro turno o eleitor já se manifestou contrário ao monopólio do poder por um único partido


Embora a política se mova às vezes numa zona cinzenta na qual juízos morais são provisoriamente suspensos, cabe aos democratas diminuir esse espaço. Não com imprecações morais, pois elas somente funcionam quando se politizam, mas com boas políticas constituintes capazes de punir quem for pego com a boca da botija.
O sociólogo Emir Sader foi quem melhor sintetizou os argumentos contra minha tese. Se sustento que, nas atuais eleições, derrotas do PT poderiam bloquear políticas antidemocráticas, ele, numa nota do "Painel" publicada logo depois da entrevista ("Tiroteio", pág. A4, 28/9), inverte meu raciocínio: já que o PT desenvolve a melhor política social hoje existente, qualquer derrota implicaria perda para a democracia. Deixo de lado a discutível premissa desse argumento, mas convém me deter nessa afirmação de que o reforço da política social representa ganho para a democracia. O professor da USP simplesmente se esquece de que políticas sociais eficazes podem ser desenvolvidas em regimes não-democráticos -basta lembrar o primeiro período Vargas.
Esse esquecimento rudimentar exprime aquele preconceito da esquerda que privilegia a democracia social em prejuízo da democracia política formal e burguesa, a ser um dia erradicada. Ora, se a política contemporânea se arma a partir do controle do capitalismo, e não mais de sua abolição, a política representativa se torna indispensável. O desafio não é combinar e controlar os dois processos?
Logo que o PT veio para o centro, pensei que pudesse se aproximar do PSDB. Nunca imaginei aliança, mas entrelaçamento na disputa. O confronto, porém, acentuou-se na medida em que bipolaridade -que não implica bipartidarismo de fato- passou a representar duas formas de conceber o Estado. Se a atual política econômica continua a política anterior, na educação, na saúde e assim por diante, os governos petistas, talvez por causa de suas origens sindicalistas, aproximam-se dos movimentos sociais ainda que isso fira certos princípios republicanos.
É sintomático que o presidente Lula comece sua administração cobrindo-se com o boné do MST e, agora, venha a ser multado por ter feito propaganda de Marta Suplicy numa cerimônia pública. Notável é que se justifica afirmando que as obras públicas não podem esperar o calendário eleitoral, quando transgride porque se aproveitou de um espaço público para fazer propaganda partidária. Em contrapartida, o PSDB, originalmente partido de quadros, precisa da "res publica" para se aproximar dos movimentos sociais. Essa dupla forma de conceber o Estado não se torna patente quando se considera o desmonte que o atual governo faz das agências reguladoras?
A saúde da democracia brasileira dependerá do equilíbrio dessas duas tendências? Se não há, no horizonte, ameaça de regimes totalitários, nem por isso deixamos de assistir a cada dia ao manejo das regras institucionais e políticas extravasando os limites de suas respectivas legalidades?
No primeiro turno o eleitor já se manifestou contrário ao monopólio do poder por um único partido. Espero que no segundo siga a mesma trajetória. Por isso torço para que José Serra vença em São Paulo e José Fogaça, em Porto Alegre. Mas me regozijarei com a vitória de Fernando Pimentel, em Belo Horizonte, e com o sucesso de Luizianne Lins, em Fortaleza.
Interessa, porém, acompanhar o movimento do PPS, novo tipo de centro, que, depois do PT, foi o partido que mais cresceu em número de votos. Não poderá contrabalançar a tendência à direita que o PSDB, no seu confronto com o PT, venha a desenvolver?

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras).


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