São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O PARADOXO DE RICHELIEU

"Fazer uma lei e não a mandar executar é autorizar a coisa que se quer proibir". Essa bela e verdadeira frase é do cardeal de Richelieu (1585-1642), a "eminência parda" por trás do governo de Luís 13. Circula, portanto, há mais de 350 anos, mas parece ainda não ter sensibilizado parlamentares brasileiros.
As dezenas de milhares de legisladores do país (vereadores, deputados estaduais e federais e senadores) despejam anualmente milhares de novas regras no Direito brasileiro, sem se preocupar muito com a sua aplicação, que é, em princípio, uma responsabilidade do Executivo.
O resultado é um emaranhado de normas, por vezes inócuas, por vezes contraditórias, que nem sempre atendem ao requisito básico de qualquer lei, que é tornar mais civilizada a vida em sociedade.
Os exemplos de leis descabidas são muitos. O mais recente é a proposta que tramita no Senado para proibir que motoristas fumem ao volante. A argumentação é a de que o ato de fumar tira parte da concentração do condutor, impedindo-o de dedicar sua integral atenção ao tráfego. Ela pode até ter fundamento neurológico, mas a lei não precisa chegar ao detalhamento de descrever cada uma das tarefas incompatíveis com a condução de um veículo, como fumar, utilizar o telefone celular. Essa mesma lógica exigiria a proibição de rádios nos carros e até de conversas entre motorista e passageiros.
Se o veto ao fumo de fato for aprovado e sancionado, é bastante razoável apostar que se tornará mais uma daquelas leis que "não pegam", seja por ser pouco razoável, seja pelas evidentes dificuldades de fiscalização.
No mesmo caminho está a proposta, que chegou a ser aprovada pela Assembléia Legislativa de São Paulo, mas foi oportunamente vetada pelo governador, de proibir a criação de algumas raças de cães tidas como especialmente violentas no Estado. Para de fato implementar a medida, seria preciso criar uma espécie de polícia canina, capaz até mesmo de reconhecer traços das raças proscritas em animais mestiços.
A iniciativa dos legisladores paulistas é até modesta diante de outras, como a do deputado federal que pretende proibir o uso de palavras estrangeiras ou a do senador que quer regulamentar a profissão de astrólogo e o ensino dessa disciplina.
O Brasil, infelizmente, parece ter herdado algo da pior tradição cartorialista ibérica, segundo a qual todo problema pode ser resolvido com a decretação de uma nova lei.
As coisas não são bem assim. Leis são um assunto sério. Além de moldar as relações sociais e institucionais de um país, do casamento ao comércio, passando pelo trânsito, e da sucessão presidencial à decretação de guerra, elas ajudam a definir o caráter de um povo, pela forma como ele se relaciona com as normas.
Não existe, evidentemente, um número ideal de leis que um país deve ter, mas o bom senso recomenda que elas sejam parcimoniosas, claras, bem redigidas e, acima de tudo, implementáveis, para evitar que continuemos alimentando o paradoxo de Richelieu ao inadvertidamente autorizar o que queremos proibir.



Texto Anterior: Editoriais: PT COM JUROS
Próximo Texto: Lisboa - Clóvis Rossi: A hora de a esquerda pensar
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.