São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O triunfo do subúrbio

JOSÉ DE SOUZA MARTINS


A disputa entre Lula e Serra foi, sem dúvida, o triunfo do subúrbio, qualquer que tivesse sido o vencedor

A eleição presidencial recente desperta euforia dentro e fora do Brasil. É notável e insólito que um ex-operário metalúrgico, apoiado em votação consagradora, chegue à Presidência da República. Apesar de Lula, o torneiro-mecânico, estar longe dos tornos há uns 30 anos, isso não anula o fato de que estamos em face do mais espetacular caso de ascensão social em toda a história do país.
Ao ver pela primeira vez o Palácio da Alvorada, Marisa Letícia Lula da Silva teria dito ao marido que os donos do poder nunca os deixariam chegar lá. Se alguém tinha alguma dúvida, ficou agora sabendo que aqui o dono do poder já é o voto dos cidadãos, no mínimo desde que Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente. Enfim, chegamos lá.
É verdade que a votação espetacular de Lula também teve seus limites. Dos eleitores inscritos, 54% não votaram nele, ou seja, 62,5 milhões, em confronto com os cerca de 53 milhões de votos por ele recebidos. Isso é bom, para que ele se lembre sempre de que a legitimidade do voto que o elegeu está também no voto que não foi para ele.
Um dos fatos notáveis desta eleição é que não só o eleito, mas também seu adversário, José Serra, procedem do subúrbio industrial e do mesmo subúrbio da cidade de São Paulo. De fato, viveram a adolescência a não pouco mais do que uns três quilômetros um do outro, em meio a chaminés e apitos de fábricas.
O Lula que nós conhecemos não é, politicamente falando, um filho do sertão. É um filho do ABC operário, da São Bernardo industrial, da cultura operária moderna da segunda industrialização dos tempos de JK, do migrante nordestino e mineiro. O Serra que não ganhou a eleição é um filho do bairro industrial da Moóca, da cultura operária mais antiga da primeira industrialização, do imigrante estrangeiro, iniciada no final do século 19 e fortalecida nos tempos do dr. Getúlio Vargas.
Ainda é forte nesse território suburbano a cultura proletária católica, inspirada na doutrina social do Papa Leão 13, na "Rerum Novarum" e em seus valores sociais. Nesse espaço de confins da cidade, em que existiram também, nos anos 30, as Società Doppo Lavoro -núcleos de cultura e lazer do "fascio"-, o catolicismo social venceu o comunismo. Muito ativo na região que já foi, proporcionalmente à população, o maior núcleo comunista da América do Sul.
Ambos os candidatos são também filhos emblemáticos da ideologia formulada pelo senador Antônio da Silva Prado, grande fazendeiro e industrial paulista, empresário modelo, ministro do Império -a ideologia da ascensão social pelo trabalho, lenta e gradual, fruto possível, como ele preconizava e dizia, em 1888, da morigeração, da sobriedade e do labor. Assim seria o regime de trabalho livre que se inaugurava. Fruto, também, do encontro dessa ideologia com o novo catolicismo da era industrial, distinto do catolicismo da dominação senhorial.
Na perspectiva desse encontro de valores, diferente do que se pensa e diz nos dias de hoje, ser pobre não era uma virtude. Era sobretudo um desafio à coragem, à vontade de trabalhar e à competência do próprio trabalhador para vencer as adversidades da vida.
Ao longo de quase um século, a indústria criou no ABC muitos e bons empregos, abrigo para os imigrantes e migrantes de todas as partes. O ABC, a partir dos anos 30, tornou-se um dos mais bem-sucedidos laboratórios de ascensão social do país. As aspirações operárias estavam centradas numa enorme valorização das virtudes redentoras do trabalho, no privilegiamento da família, da casa e da religião como núcleos sagrados da sociabilidade operária e na educação como o mais legítimo dos meios de emancipação social dos trabalhadores. Essa eficaz ideologia burguesa selou o destino e a visão de mundo de milhares de trabalhadores do ABC e do subúrbio ao longo de décadas.
O Lula de três apartamentos em São Bernardo e um sítio no Riacho Grande não é o Lula do pau-de-arara, e sim o Lula dos melhores momentos da história social da indústria no Brasil. Essa tem sido a compreensivelmente orgulhosa trajetória de um grande número de trabalhadores na região do ABC e em todo o subúrbio paulistano. Eles vivem, assim, o último episódio do processo de abolição da escravatura e da emancipação dos que a vida condenara ao trabalho em máquina alheia e a viver no limite das conquistas e possibilidades do desenvolvimento econômico moderno.
A disputa entre Lula e Serra foi, sem dúvida, o triunfo do subúrbio, qualquer que tivesse sido o vencedor. Foi o triunfo dos herdeiros da dura história do trabalho livre no Brasil, que a história finalmente convocou para disputar a função de gestores da sociedade criada com o suor do rosto de tantos. Dos que padeceram os horrores dos navios negreiros, das naves que traficavam trabalhadores desenraizados de suas terras e de sua pátria, dos paus-de-arara que deixaram para trás o pranto e o pó.


José de Souza Martins, 64, professor do Departamento de Sociologia da USP e professor titular da Cátedra Simón Bolivar da Universidade de Cambridge (Reino Unido), é autor, entre outras obras, de "Os Camponeses e a Política no Brasil" (ed. Vozes).


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