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DEMÉTRIO MAGNOLI
O véu e a República
A Constituição francesa de
1793 durou poucos meses, mas
permanece como o principal documento legal emanado da Revolução.
Ela concedeu a cidadania aos estrangeiros domiciliados na França por um
ano e, também, a "qualquer estrangeiro considerado pelo corpo legislativo
como necessitado de tratamento humano". A "lei do véu", que entrou em
vigor em agosto do ano passado e
proíbe o uso de símbolos religiosos
ostensivos nas escolas públicas francesas, é um fruto tardio dessa tradição.
A França é um contrato entre cidadãos que não se distinguem perante a
lei pela sua origem ou cultura. Nas escolas públicas da República, os jovens
não são cristãos, muçulmanos ou judeus: são estudantes.
"Seria contrário à liberdade apagar
os símbolos que representam crenças
pessoais". Com essas palavras, o papa
João Paulo 2º expressou sua oposição
à "lei do véu", perfilando-se com religiosos islâmicos de vários países. Os
Estados Unidos, por meio de um relatório oficial sobre liberdade religiosa,
também criticaram a lei francesa.
"Acreditamos que as muçulmanas tenham o total direito de usar o véu",
afirmou John Hanford, do Departamento de Estado.
O fogo contra a "lei do véu" reuniu
integristas e libertários. Os primeiros,
islâmicos ou cristãos, usam a bandeira
da liberdade religiosa para atacar o
princípio de separação entre Estado e
religião. No fundo, é a própria noção
de escola pública que lhes é estranha.
Os libertários dividem-se em duas
correntes: os ultraliberais, que fazem
da liberdade individual um valor absoluto, e os multiculturalistas, que enxergam a sociedade sob o prisma de
identidades culturais de grupos. Ambos resistem, pela direita ou pela esquerda, ao princípio da igualdade política dos cidadãos.
Ao contrário do que se previa, as jovens muçulmanas não se insurgiram
contra a "lei do véu". As garotas, em
geral, interpretaram a proibição como
a conquista de uma liberdade. Ao descobrir a cabeça compulsoriamente à
entrada da escola e encarar de igual
para igual seus colegas do sexo masculino, realizam a sua própria vontade,
que é negada no ambiente familiar e
nos círculos públicos dos subúrbios
onde moram.
Os atuais distúrbios na França provocaram o reencontro intelectual de
integristas, ultraliberais e multiculturalistas do mundo inteiro. Contra todas as evidências factuais, eles encontraram na sedição dos subúrbios o levante muçulmano profetizado por
suas próprias convicções ideológicas.
Quase em uníssono, diagnosticaram a
falência do "modelo francês" (isto é:
do princípio da igualdade política dos
cidadãos) e receitaram o coquetel "anglo-saxão" (e brasileiro?) de políticas
compensatórias, ações afirmativas e
cotas universitárias. Eles sugerem registrar na lei as desigualdades sociais,
cancelando de uma vez por todas a
promessa de igualdade de 1789.
Encerrados no véu do seu dogma,
eles não podem ver o paradoxo da sedição dos subúrbios. Os jovens amotinados não querem o sopão dos pobres
que vem junto com os rótulos de "muçulmanos" ou "afrodescendentes",
mas, sim, ser tão franceses como os
demais que vivem na parte luminosa
da cidade. Querem tornar verdadeira
a mensagem que lhes enviou Jacques
Chirac: "seja qual for sua origem, vocês são todos filhas e filhos da República".
Não pode existir prova maior da vitalidade do "modelo francês".
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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