São Paulo, quinta-feira, 17 de novembro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

O véu e a República

A Constituição francesa de 1793 durou poucos meses, mas permanece como o principal documento legal emanado da Revolução. Ela concedeu a cidadania aos estrangeiros domiciliados na França por um ano e, também, a "qualquer estrangeiro considerado pelo corpo legislativo como necessitado de tratamento humano". A "lei do véu", que entrou em vigor em agosto do ano passado e proíbe o uso de símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas francesas, é um fruto tardio dessa tradição. A França é um contrato entre cidadãos que não se distinguem perante a lei pela sua origem ou cultura. Nas escolas públicas da República, os jovens não são cristãos, muçulmanos ou judeus: são estudantes.
"Seria contrário à liberdade apagar os símbolos que representam crenças pessoais". Com essas palavras, o papa João Paulo 2º expressou sua oposição à "lei do véu", perfilando-se com religiosos islâmicos de vários países. Os Estados Unidos, por meio de um relatório oficial sobre liberdade religiosa, também criticaram a lei francesa. "Acreditamos que as muçulmanas tenham o total direito de usar o véu", afirmou John Hanford, do Departamento de Estado.
O fogo contra a "lei do véu" reuniu integristas e libertários. Os primeiros, islâmicos ou cristãos, usam a bandeira da liberdade religiosa para atacar o princípio de separação entre Estado e religião. No fundo, é a própria noção de escola pública que lhes é estranha. Os libertários dividem-se em duas correntes: os ultraliberais, que fazem da liberdade individual um valor absoluto, e os multiculturalistas, que enxergam a sociedade sob o prisma de identidades culturais de grupos. Ambos resistem, pela direita ou pela esquerda, ao princípio da igualdade política dos cidadãos.
Ao contrário do que se previa, as jovens muçulmanas não se insurgiram contra a "lei do véu". As garotas, em geral, interpretaram a proibição como a conquista de uma liberdade. Ao descobrir a cabeça compulsoriamente à entrada da escola e encarar de igual para igual seus colegas do sexo masculino, realizam a sua própria vontade, que é negada no ambiente familiar e nos círculos públicos dos subúrbios onde moram.
Os atuais distúrbios na França provocaram o reencontro intelectual de integristas, ultraliberais e multiculturalistas do mundo inteiro. Contra todas as evidências factuais, eles encontraram na sedição dos subúrbios o levante muçulmano profetizado por suas próprias convicções ideológicas. Quase em uníssono, diagnosticaram a falência do "modelo francês" (isto é: do princípio da igualdade política dos cidadãos) e receitaram o coquetel "anglo-saxão" (e brasileiro?) de políticas compensatórias, ações afirmativas e cotas universitárias. Eles sugerem registrar na lei as desigualdades sociais, cancelando de uma vez por todas a promessa de igualdade de 1789.
Encerrados no véu do seu dogma, eles não podem ver o paradoxo da sedição dos subúrbios. Os jovens amotinados não querem o sopão dos pobres que vem junto com os rótulos de "muçulmanos" ou "afrodescendentes", mas, sim, ser tão franceses como os demais que vivem na parte luminosa da cidade. Querem tornar verdadeira a mensagem que lhes enviou Jacques Chirac: "seja qual for sua origem, vocês são todos filhas e filhos da República".
Não pode existir prova maior da vitalidade do "modelo francês".


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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