São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma reforma impostora

ALMIR TEUBL SANCHES


Com o pacote tributário anunciado na última quinta, o Brasil desperdiça uma oportunidade de fazer uma reforma estrutural efetiva

O PACOTE anunciado pelo governo na última semana parece intuir o problema da injustiça de nosso sistema tributário. Mas, acanhado, contenta-se em tangenciá-lo, sem buscar solução definitiva.
Nosso sistema tributário pode ser estudado como um exemplo de como o mundo jurídico descola-se da realidade, produzindo normas, especialmente as constitucionais, que são tornadas letra morta por distorções cuidadosamente orquestradas.
Teoricamente, nossa Constituição assenta tal sistema sobre as bases do princípio da capacidade contributiva, segundo o qual os impostos deverão ser, sempre que possível, graduados pela capacidade econômica do contribuinte. Aquele que participa de maior parte da riqueza produzida pelo país deve contribuir proporcionalmente mais. Em outras palavras, quem tem mais deve pagar mais.
Na prática, entretanto, o arcabouço em que se funda o sistema tributário é extremamente injusto, configurando verdadeira inversão do princípio da capacidade contributiva.
Recente pesquisa do Ipea mostra que os 10% mais pobres da população brasileira sofrem tributação total de 32,8% da sua renda, enquanto os 10% mais ricos contribuem com 22,7%. Proporcionalmente, os mais pobres pagam até 44,5% mais tributos.
A principal razão para essa inominável injustiça é o fato de, no Brasil, existir maior tributação sobre o consumo (tributos indiretos) do que sobre a renda e o patrimônio (tributos diretos). Como os mais pobres comprometem maior parte da renda consumindo produtos indispensáveis à sobrevivência, eles pagam proporcionalmente mais tributos. Levados em conta só os tributos indiretos, os 10% mais pobres pagam 29,1% de sua renda total, e os mais ricos, apenas 10,7%.
A tributação sobre o consumo, como se vê, impõe o desvirtuamento do princípio da capacidade contributiva, pois dificilmente seria possível cobrar mais pelo consumo daqueles que podem pagar mais.
A solução para essa grave injustiça seria a diminuição dos tributos indiretos (consumo) e o aumento dos tributos diretos (renda e patrimônio), sobretudo dos que incidem sobre a renda dos que mais ganham.
Tal reformulação passaria necessariamente pela reestruturação do principal tributo direto brasileiro: o Imposto de Renda. E é exatamente aqui, no ponto nevrálgico da questão, que a reforma se acanhou e mostrou-se paliativa, amedrontada diante dos interesses que uma solução definitiva precisaria afrontar.
A favor da reforma, é preciso dizer que a criação de duas novas faixas de incidência atende a uma necessidade de maior proporcionalidade do IR há muito almejada. O Ipea recentemente pesquisou 26 países e descobriu que, além do Brasil, só Peru e Barbados mantinham meras duas faixas de incidência. Assim, o salto para quatro faixas parece ser inegável progresso, muito embora a média entre os países pesquisados seja de cinco faixas.
Entretanto, um exame um pouco mais detido desvela um progresso quase ilusório, tímido demais para ser festejado. Com efeito, a reforma não cuidou de ampliar a faixa de isenção para os que possuem menor renda.
Tampouco criou nova alíquota para incidir sobre as maiores rendas, de forma que os atuais 27,5% continuarão valendo tanto para quem receber R$ 3.853 mensais quanto para quem tiver renda mensal de centenas de milhares (ou milhões) de reais.
A experiência internacional mostra que nossa alíquota máxima (27,5%) é baixa. Entre os 26 países pesquisados pelo Ipea, só o Peru possui alíquota máxima menor que a nossa (20%). A média aritmética das alíquotas cobradas das maiores rendas nos países pesquisados fica em 42,2%. Holanda (60%), França (57%), Alemanha (53%), Chile (45%) e EUA (39,6%) são exemplos de países que cobram mais de seus ricos do que o Brasil.
Caso cobrasse maiores alíquotas sobre as grandes rendas, a conseqüente folga arrecadatória garantiria ao governo verdadeiro arsenal de medidas tendentes a tornar mais justo o sistema tributário, como o fim de boa parte dos tributos indiretos.
Um estudo mostra que, se o IR tivesse 12 faixas, com alíquotas variando de 5% a 60% (esta para rendas acima de R$ 50.000), seria possível extinguir a Cofins. Tal extinção, segundo o estudo, resultaria em uma redução da desigualdade de renda equivalente a três programas Bolsa Família, diminuindo em 10,2% a pobreza do país, o que corresponde a retirar dessa condição 6,4 milhões de pessoas.
Nas palavras de Hannah Arendt, é nos momentos de crise que podemos intervir mais efetivamente no sentido de mudar o mundo. Com o pacote tributário anunciado, o Brasil desperdiça uma oportunidade de fazer uma reforma estrutural efetiva. Contenta-se, assim, com soluções paliativas que não fazem mais que salvar um modelo que agora se mostra ineficiente, mas sempre se soube injusto.


ALMIR TEUBL SANCHES , 29, mestre em filosofia do direito pela USP, é procurador da Fazenda Nacional.

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