São Paulo, terça-feira, 18 de janeiro de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Quem paga e quem ganha?

A vida econômica e política do Brasil hoje gira em torno de negócio que precisamos desfazer e substituir. Para isso, é preciso esclarecer as consciências e ganhar o poder.
Quando Lula assumiu a Presidência, a dívida pública interna crescia de maneira insustentável. O novo governo compreendeu que esse esquema não podia continuar. Entretanto não iniciou renegociação ordeira da dívida pública nem começou a organizar bases para crescimento econômico fundado em democratização das oportunidades, em capacitação dos brasileiros e em mobilização de poupança de longo prazo para investimento de longo prazo. Em vez disso, optou por privilegiar a confiança financeira e por seguir cartilha de reformas em que ninguém, afora os mestres em Washington e os alunos em Brasília, acredita mais. Agravou o sacrifício fiscal e dedicou os recursos resultantes ao pagamento de proporção maior dos juros da dívida pública. Com isso, diminuiu o ritmo do crescimento da dívida sem ainda estabilizá-lo. E restringiu os recursos, já escassos, disponíveis para educação, saúde e obras. A curto prazo, o sistema resultante é economicamente mais estável. A médio prazo, porém, é politicamente menos estável.
Os tomadores da dívida pública não são apenas pequena elite de ricaços. Também não são parcela ampla do povo brasileiro. Quase 80% dos títulos da dívida estão em mãos de bancos comerciais. Parte relativamente pequena desse montante corresponde a capital dos próprios bancos. Parte maior representa depósitos super-remunerados de pessoas jurídicas e físicas. As pessoas jurídicas são as empresas que recebem, com isso, compensação capenga pela dificuldade de atuar num ambiente em que o juro real excede o lucro médio: quem arrisca sufocar como produtor consegue respirar como rentista. As pessoas físicas são algumas centenas de milhares de depositantes, que investem diretamente ou por meio de fundos de pensão. Incluem boa parcela da classe média. Ficam sem escola ou hospital público aceitáveis. Pagam o Imposto de Renda, que incide principalmente sobre o salário da classe média. Em troca, quem tenha um dinheirinho recebe juro alto no banco. Mau negócio, para a classe média e para o país. Os trabalhadores ficam fora dos benefícios. Pagam-lhe, porém, os custos: por escassez de capital para aumentar a produtividade do trabalho, por imposto desviado para pagar juros e por falta de um Estado que possa investir no social. O brinde dos juros serve para separar a classe média dos trabalhadores. Investem-se os ganhos financeiros em novos aplicações financeiras, ao léu da economia real e das necessidades da produção.
Proponho a reorganização desse sistema sobre duas bases. A primeira base é a renegociação ordeira da dívida pública, com continuação do sacrifício fiscal, para fazer o juro ficar mais baixo do que o lucro médio e para aumentar a capacidade de investimento do Estado. A segunda base é a construção de ensino e de saúde públicos de qualidade para atrair a classe média ao sistema público em proveito de todos. A classe média deixará de ser massa de manobra. Terá razões para participar de uma aliança majoritária que faça prevalecer os interesses do trabalho e da produção e que generalize, de fato, a prestação social do Estado. Moderada e realista no método, essa reorientação é revolucionária no conteúdo. A tarefa é traduzi-la em linguagem que todos os brasileiros entendam. E encarná-la em projeto político que lute pelo poder para transformar o Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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