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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
A alma para o diabo
SUBJAZ ao discurso de Serra
em sua posse o ensaio de Max
Weber sobre a "Política como
Vocação". O governador o subscreveu para, dias depois, esquecê-lo,
mas não por falta de compreendê-lo. Serra viu, com justeza, que a distinção entre ética da responsabilidade (atenta às condições e conseqüências dos atos) e ética da convicção (baseada em valores absolutos) não se reporta diretamente ao
acontecer empírico, mas se dá enquanto "máxima", isto é, modos de
ordenar os dados da experiência
política (segundo cálculo racional
ou segundo valores) definindo regras subjetivas da conduta. Nesse
plano formal, o conflito entre
aqueles princípios, determinantes
dos motivos das ações, é irreconciliável.
Separá-los e projetá-los sobre
ações efetivas abre campo para dissolver convicções incômodas e, em
nome da responsabilidade, legitimar vantagens. A antítese entre
atuar com certezas e refletir sobre
suas repercussões não é irredutível
no plano concreto. Se, para Weber,
o poder assenta na força, e a violência é o estofo da política, aquelas
máximas são insustentáveis em
seu rigorismo. Exemplo: o elã revolucionário requer, ao instituir-se,
complexa "máquina" humana, cuja
operação supõe o "do ut des" e cuja
burocracia gera eficácia corrupta.
Aí, os fins absolutos convertem-se,
pela rotinização de meios vis, em
perícia filistina, e o revolucionário
vira técnico estereotipado. Tão-pouco a prática responsável é indene aos meios dúbios e ramificações
maléficas. Quem pactua com a violência expõe-se a seus efeitos, entrega-se "às forças diabólicas emboscadas na política". No trato desses paradoxos, fins últimos e responsabilidade complementam-se,
constituindo, em uníssono, a pessoa política. Serra captou esse vínculo e acolheu sua decorrência, a
recusa do realismo, combatido por
Weber: "... o homem não atingiria o
possível se, repetidamente, não
buscasse o impossível". A justificação dos meios pelos fins pode
abrir-se ao oportunismo ou mesmo, no afã de atingir alvos meritórios, pôr a alma a perder.
Na semana finda, o governador
enjeitou a letra e o espírito de seu
discurso. Se, para realizar fins políticos, ele cede às intrigas de poder
nos confrontos partidários internos, renega a oposição, transige
com o duvidoso, barganha apoio federal por facilidades no Legislativo
paulista, concilia para obter recursos ou ampliar a ação do Estado, se
usa tais meios, falta à confiança dos
eleitores e se arrisca às malas-artes
da cavilação. Hoje, Serra já mudou
de atitude diante da cobrança e gritaria geral. Se, como afirma o governador, São Paulo é uma potência civil, espiritual e socioeconômica, não haveria meios de sustentar
seus interesses, sem dar, por bagatelas, a alma ao diabo?
sylvia.franco@uol.com.br
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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