São Paulo, quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

A alma para o diabo

SUBJAZ ao discurso de Serra em sua posse o ensaio de Max Weber sobre a "Política como Vocação". O governador o subscreveu para, dias depois, esquecê-lo, mas não por falta de compreendê-lo. Serra viu, com justeza, que a distinção entre ética da responsabilidade (atenta às condições e conseqüências dos atos) e ética da convicção (baseada em valores absolutos) não se reporta diretamente ao acontecer empírico, mas se dá enquanto "máxima", isto é, modos de ordenar os dados da experiência política (segundo cálculo racional ou segundo valores) definindo regras subjetivas da conduta. Nesse plano formal, o conflito entre aqueles princípios, determinantes dos motivos das ações, é irreconciliável.
Separá-los e projetá-los sobre ações efetivas abre campo para dissolver convicções incômodas e, em nome da responsabilidade, legitimar vantagens. A antítese entre atuar com certezas e refletir sobre suas repercussões não é irredutível no plano concreto. Se, para Weber, o poder assenta na força, e a violência é o estofo da política, aquelas máximas são insustentáveis em seu rigorismo. Exemplo: o elã revolucionário requer, ao instituir-se, complexa "máquina" humana, cuja operação supõe o "do ut des" e cuja burocracia gera eficácia corrupta.
Aí, os fins absolutos convertem-se, pela rotinização de meios vis, em perícia filistina, e o revolucionário vira técnico estereotipado. Tão-pouco a prática responsável é indene aos meios dúbios e ramificações maléficas. Quem pactua com a violência expõe-se a seus efeitos, entrega-se "às forças diabólicas emboscadas na política". No trato desses paradoxos, fins últimos e responsabilidade complementam-se, constituindo, em uníssono, a pessoa política. Serra captou esse vínculo e acolheu sua decorrência, a recusa do realismo, combatido por Weber: "... o homem não atingiria o possível se, repetidamente, não buscasse o impossível". A justificação dos meios pelos fins pode abrir-se ao oportunismo ou mesmo, no afã de atingir alvos meritórios, pôr a alma a perder.
Na semana finda, o governador enjeitou a letra e o espírito de seu discurso. Se, para realizar fins políticos, ele cede às intrigas de poder nos confrontos partidários internos, renega a oposição, transige com o duvidoso, barganha apoio federal por facilidades no Legislativo paulista, concilia para obter recursos ou ampliar a ação do Estado, se usa tais meios, falta à confiança dos eleitores e se arrisca às malas-artes da cavilação. Hoje, Serra já mudou de atitude diante da cobrança e gritaria geral. Se, como afirma o governador, São Paulo é uma potência civil, espiritual e socioeconômica, não haveria meios de sustentar seus interesses, sem dar, por bagatelas, a alma ao diabo?


sylvia.franco@uol.com.br

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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