São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2007 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES O maior espetáculo da Terra
MARCELO O. DANTAS
NÃO É de hoje, diz-se do Brasil um país de história recente, com um povo ainda jovem. Desse aparente truísmo, muitas conclusões são tiradas sobre nossa inapetência pela ordem e incapacidade para o progresso. O saudoso poeta Wally Salomão chegou mesmo a sugerir fosse colocada na bandeira nacional a divisa "Harmonia e Evolução", que, a seu ver, traduziria com maior fidelidade o espírito brasileiro. Uma análise atenta do fenômeno histórico permite revelar o quanto há de arbitrário em semelhante noção. Com efeito, a suposta juventude do Brasil repousa no falso pressuposto de que as nações surgem isentas de passado. A realidade foi bem outra. Os homens que aqui chegaram -e, como eles, os que antes de Cabral habitavam nossas terras- traziam no peito a memória de antigas tradições e costumes. Nossa pátria surgiu, assim, como resultado de mesclas, sincretismos e, por que não dizer, inevitáveis atavismos. As crenças, manias e instituições que hoje nos assolam reportam, todas elas, a padrões forjados em um passado distante. Com o Carnaval não poderia ser diferente. Nossos festejos são herdeiros diretos dos ritos agrários do velho paganismo. Os antigos viam os destinos da vida vegetal e animal como intrinsecamente ligados. A fecundidade da mulher influenciava o vigor dos campos e a opulência da vegetação ajudava, por sua vez, a mulher a conceber. Faziam-se, portanto, necessários rituais capazes de promover uma mútua e salutar fertilização. Em comunidades rurais, era então comum, na época de preparação para o plantio, os jovens casais serem incentivados a se amarem sobre os campos, de modo que uns e outros verdejassem na primavera. Nos meios urbanos, semelhante prática evoluiu para a celebração periódica de orgias, em que toda a comunidade se entregava a excessos, deitando por terra as barreiras entre o homem, a natureza e os deuses. Nesse retorno ao caos, fazia-se novamente circular a energia sagrada, assegurando a perpetuação da vida. Tal era o caso das Antestérias, que os gregos celebravam no final de fevereiro em louvor a Dionísio, deus do vinho e do delírio místico. Conta Junito Brandão, em seu "Dicionário Mítico-Etimológico", que, logo ao primeiro dia de festejos, era dessacralizado o vinho novo, dando-se início a uma bebedeira generalizada, da qual participavam de forma indistinta senhores e escravos. Todos, sagradamente embriagados, dançavam e cantavam ao som de flautas e címbalos até caírem semidesfalecidos. Em Roma, igualmente concorridos eram os ritos de Átis, amado pela grande mãe Cibele. A ressurreição desse deus da vegetação era comemorada, a 25 de março, com a Hilaria, um festival em que prevalecia a licenciosidade universal. As pessoas saíam às ruas disfarçadas e todos tinham então o direito de dizer e fazer o que bem entendessem. As orgias antigas permitiam aos homens e mulheres saírem de si, tornando-se, ainda que por um breve tempo, livres como os deuses. Essa liberação total produzia o que os gregos chamavam de "kátharsis", a purificação da alma. Os entrudos portugueses que, nos séculos 16 e 17, cruzaram o oceano para dar origem ao Carnaval brasileiro, nada mais eram que adaptações cristãs desses ritos pagãos. Sua função na comunidade continuava a mesma: ao emergir do caos primordial das bacanais, a pessoa se via regenerada, pronta para novamente enfrentar a dura vida quotidiana. Embora tais evidências explicitem a ancestralidade da festa símbolo da cultura brasileira, elas nos colocam diante de uma constatação terrível: nosso Carnaval não é mais aquele! Sim, a grande festa de encerramento do verão deixou de cumprir sua função milenar. De uns tempos para cá, o que era exceção se tornou regra, e Momo passou a reinar o ano inteiro. Micaretas ou picaretas, qual a diferença? Diante de tanta zorra, é preciso reconhecer: longe de ser uma nação jovem, o Brasil se está tornando, talvez, o país mais antigo do mundo. Ora, sejamos trágicos. Eurípedes sustenta, em "As Bacantes", que a temporária subversão da ordem é fundamental a sua permanente renovação. Sendo assim, orgia de verdade, no Brasil, seriam quatro dias de seriedade absoluta. Qual Dionísio o quê -Apolo neles! Forma e o rigor métrico. Já imaginou o leitor se, durante o Carnaval, pudéssemos ter líderes capazes, políticos honestos e burocratas competentes? Se, ao menos por quatro dias, a Justiça funcionasse, a polícia protegesse e os corruptos fossem punidos? Seria uma grande catarse cívica. O maior espetáculo da Terra. MARCELO OTÁVIO DANTAS LOURES DA COSTA , 43, formado em ciências econômicas e pós-graduado em economia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é diplomata e escritor, autor do romance "Podecrer!". Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Eduardo Athayde: Descarbonizando o Carnaval da Bahia Índice |
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