São Paulo, Quinta-feira, 18 de Fevereiro de 1999
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Solidariedade aos desempregados


Nossos atos e decisões podem gerar estruturas que provocam injustiça e exclusão. É o pecado social, soma dos pessoais


RAYMUNDO DAMASCENO

Desde 1964 e a cada ano, a Igreja Católica lança no Brasil, no período da Quaresma, a Campanha da Fraternidade. Seus temas visam sensibilizar a sociedade para aspectos da realidade social que exijam maior esforço na vivência da caridade, a qual implica desvelo com todas as necessidades do próximo.
Esse espaço no calendário litúrgico, da Quarta-Feira de Cinzas à Páscoa, deve ser percorrido como um verdadeiro caminho de conversão, em seu tríplice aspecto: autodomínio, renúncia ao supérfluo e abertura a Deus e ao próximo -principalmente aos mais necessitados e excluídos. O Evangelho de Mateus traduz esses aspectos em três práticas de piedade: jejum, esmola e oração.
Em 1999, último ano do triênio preparatório dos 2.000 anos do nascimento de Cristo, a Igreja Católica no Brasil propõe como tema da Campanha da Fraternidade o desemprego, com o lema "Sem trabalho... Por quê?". Esse fenômeno é hoje, por diversas razões, uma das maiores preocupações do final do milênio, quer nos países desenvolvidos, quer nos chamados emergentes.
O trabalho é um dever de todo homem. É com ele que o ser humano busca sustento para si e para os seus; por meio dele, relaciona-se com os outros, presta um serviço aos semelhantes e aperfeiçoa a obra da criação.
Na vida econômica, o trabalho é superior ao capital. Este é mero instrumento para a produção de bens e serviços; aquele procede imediatamente da pessoa humana, patrimônio mais precioso de qualquer empreendimento.
Do dever de trabalhar deriva o direito a um trabalho digno e justamente remunerado. Para que a pessoa possa cumprir esse dever, a sociedade tem a responsabilidade ética de promover e apoiar uma cultura do trabalho, assegurando-o para os adultos.
O lema da campanha de 1999 nos interpela sobre as causas de desemprego e subemprego no Brasil. Convida-nos a atuar solidariamente em favor dos desempregados e a obter soluções para esse grave problema, que aflige tantas famílias. Entre as causas principais do desemprego, cabe apontar algumas.
1) A revolução tecnológica, sob o signo da informática e da telemática, aplicada a todos os setores produtivos e administrativos. Esse processo, positivo em si, pode até agravar o desemprego quando a técnica se sobrepõe à ética, isto é, à realização da pessoa humana em todas as suas dimensões.
2) O capital meramente especulativo, desligado da produção, que circula de um país para outro em segundos, na busca de maior rentabilidade.
3) O sistema conhecido como "neoliberalismo", que considera o lucro e as leis do mercado parâmetros absolutos, em prejuízo da dignidade e do respeito à pessoa humana, provocando a marginalização dos mais fracos.
4) A insuficiência de conhecimento e capacitação tecnológica para fazer frente às contínuas transformações dos modos de produção.
5) Medidas econômicas que favorecem a abertura indiscriminada à concorrência externa, gerando o domínio dos poderosos sobre os mais fracos.
6) O peso da dívida externa e o pagamento de seu serviço, que privam o país dos recursos para educação, saúde, desenvolvimento social e a criação de um fundo gerador de empregos.
7) Por último, mas não menos importante, o pecado, raiz dessas causas. Nossos atos e decisões têm valor moral e dimensão social; podem gerar estruturas políticas e econômicas que provocam injustiça e exclusão social, frutos de nossos pecados. É o pecado social, soma dos pecados pessoais.
A Quaresma é um apelo forte à conversão, processo que deve se estender por toda a vida. É o esforço permanente de assimilar os valores evangélicos, que contrastam com a tendência dominante no mundo e devem nortear o comportamento e as decisões de cada um.
A campanha, que tem seu momento forte no período da Quaresma, lança a todos (especialmente políticos, empresários e construtores da sociedade) um grande desafio e um veemente apelo à sua responsabilidade na procura de caminhos que conduzam a uma sociedade mais justa, solidária e fraterna.
Cada um é chamado a não fechar os olhos à realidade social do povo e a rejeitar a solução proposta pelo determinismo econômico das leis de mercado.
É tempo de abandonarmos o conformismo e o pessimismo que vêem a situação atual como inevitável e julgam inúteis quaisquer esforços para melhorar as condições de vida dos brasileiros.
Que a celebração da Páscoa de Cristo, morto e ressuscitado para nos dar vida em abundância e fortalecer nossa esperança, encontre cada um mais solidário com os desempregados e mais comprometido com a construção de um Brasil democrático, com justiça social.


D. Raymundo Damasceno Assis, 62, é bispo auxiliar de Brasília (DF) e secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).



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