São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Memória da Independência

MARCO MACIEL

Não foi sem razão que, em carta de 14 de fevereiro de 1839 enviada ao conselheiro Manoel José Maria da Costa Sá, o advogado português João Loureiro, privilegiado observador das coisas brasileiras, escreveu que "os homens de hoje, apesar de tantos ócios, não vêem senão com o dia; mesmo as semanas já chegam a poucos, os meses a muito poucos; os anos a raríssimos; os séculos a nenhum".
No calendário gregoriano, os anos bissextos se distinguem dos demais. Na história, ao contrário, nem os calendários coincidem. Aí reside a diferença entre os que se guiam pelo tempo e os que têm a obrigação de raciocinar com a história. A política nos induz a considerar mais a história, que se avalia por séculos, do que os calendários, que se contam por dias, meses e anos.
Faço essas afirmações para lembrar que estamos nos aproximando de um evento referencial para o país e de grande conteúdo simbólico: o bicentenário da nossa Independência, a ocorrer em 2022. Pode parecer que 18 anos seja muito tempo, mas é, talvez, o espaço de apenas uma geração, e suponho que resgataríamos um pouco de nosso passado, celebraríamos muito de nosso presente e apontaríamos alguns dos rumos de nosso futuro às gerações que nos vão suceder se dedicássemos um pouco das nossas energias a preparar a reflexão crítica do que espero seja nossa maioridade como nação.


No Brasil, geralmente as celebrações de grande conteúdo simbólico não são previamente preparadas


No Brasil, geralmente as celebrações de grande conteúdo simbólico não são previamente preparadas e, por isso, suas comemorações ocorrem de forma improvisada e até de afogadilho. Isso não ocorre em outros países. Recordo-me de quando os EUA comemoraram o bicentenário de sua Constituição. Os preparativos começaram com décadas de antecedência. Algo semelhante aconteceu na passagem do bicentenário da Revolução Francesa, em 1989. Lembraria, ainda, os 500 anos de descoberta da América, também alvo de grandes celebrações e reflexões, graças ao grande esforço feito na Europa, especialmente pela Espanha.
Dois séculos podem não ser nada na história da humanidade, mas já são bastante na vida de toda e qualquer nação. Por isso, e calcado na esperança de começarmos a selecionar e a sistematizar o acervo de nossa avaliação como povo, como civilização e como expectativa para gerações vindouras, que, em breve, estarei submetendo ao Congresso Nacional a criação da Comissão Nacional para o Programa do Bicentenário da Independência. Não se trata de um órgão executivo, mas tão somente de uma tentativa de mobilizar esforços, definir diretrizes e incentivar a participação dos três Poderes da União, dos entes federativos e das entidades e instituições privadas, para definirmos um programa que possa sintetizar nossas esperanças de dar a essa efeméride a dimensão que não soubemos ou não conseguimos lograr em outras oportunidades.
Convém recordar o centenário da Independência. Inicio referindo-me à realização, no Teatro Municipal de São Paulo, da Semana de Arte Moderna, cuja importância e repercussão tornaram-se fatos incontrastáveis de nossa história, o que levou Gilberto Amado a escrever ter sido o movimento de 22 "o renascer do Brasil dentro de nós".
No balanço do ano de 1922 observa-se também, entre outros eventos, o início do movimento tenentista e o florescimento do movimento de afirmação dos direitos da mulher, com a realização do 1º Congresso Internacional Feminista, organizado pela notável Bertha Lutz, então com 28 anos, que culminou na criação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino.
Em setembro, o Brasil recebeu a visita do rei Alberto, da Bélgica, e tiveram início as solenidades oficiais do centenário da Independência, culminando com a exposição do centenário, o maior evento dessa natureza até então realizado no país. Desse acontecimento ficaram algumas reminiscências arquitetônicas no Rio de Janeiro, como a sede da Academia Brasileira de Letras, o Petit Trianon, doado pelo governo francês, o edifício onde hoje se instala o Museu Histórico Nacional e a antiga sede do Ministério da Agricultura.
Se essas atividades constituíram manifestações culturais, realizações materiais e atos políticos que se incorporaram à história política nacional, outras, como o 1º Congresso de História Nacional, convocado, patrocinado e realizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, mostram o quanto o país se mobilizou em torno da celebração da maior data da nossa existência.
Gilberto Freyre sempre dizia que o tempo era "tríbio", ou seja, o tempo era marcado por uma interposição de presente, passado e futuro. Portanto não poderíamos deixar de ter sempre presente que algo do passado habita dentro de nós e igualmente há sempre a presença do futuro a nos conduzir. Assim, ao propor desde já a criação de uma grande comissão para o bicentenário da Independência, vislumbro a oportunidade ímpar de pensar o país e o fazer numa visão mais dilatada, porque tenho presente que o Brasil tende a ter um papel cada vez mais saliente neste século. Para tal, muito dependerá de nós.

Marco Maciel, 63, é senador pelo PFL-PE. Foi vice-presidente da República (governo Fernando Henrique), ministro da Educação (governo Sarney) e governador de Pernambuco (1978-82).


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