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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A caixa-preta da Justiça

JOSÉ CARLOS DIAS

É preciso mesmo conhecer a caixa-preta do Poder Judiciário. Não há por que se sentir melindrada a tripulação do avião, por pretender-se apurar se o acidente ocorreu pelas falhas humanas, técnicas, ou por ambas, confiando que a caixa-preta ajude na elucidação.
O povo brasileiro elegeu Lula para governar de acordo com seus talentos, seu jeito de ser, seu carisma. E foi esse homem que teve a ousadia necessária para dizer que é preciso também mexer no Judiciário, abrir sua caixa-preta, e que defendeu, abertamente, o seu controle externo.
Se qualquer um de nós brasileiros tem o direito de assim pensar e dizer, muito mais razão e legitimidade tem aquele que foi eleito para presidir este país, investido de mandato para afirmar que os poderes são independentes, mas não são estanques, e que a simbiose de Montesquieu se aperfeiçoa com a harmonia que de forma nenhuma pode ser equiparada a cambalacho, a demarcar limites e posições em seus terreiros.
O Poder Executivo é extremamente criticado e questionado. Como vem das ruas a sua legitimidade, de todo canto surgem pedras e ataques, fundados e infundados, até mesmo por parte de membros do Poder Judiciário, muitas vezes em atividade não-judicante. O presidente do Supremo, de talento e brilho, vive a lançar farpas contra o Executivo. Há quem diga que juiz não deve falar fora dos autos, mas a verdade é que Marco Aurélio é também chefe de Poder e não pode ficar silente em certas circunstâncias.
O Legislativo também volta e meia é alvo de críticas, as mais violentas, e sobrevive. Tantos ataques são importantes para que se aperfeiçoe a representação parlamentar. A discussão sobre a abrangência da imunidade parlamentar é um exemplo nesse sentido. Os poderes com origem no voto popular têm indiscutível legitimidade para dizer que é hora de a Justiça ser eficiente, rápida, e equitativa, que há um importante papel reservado ao Judiciário na construção do país como democracia autêntica.
Não se pode pensar em soluções de conflitos sociais sem a participação do juiz; o combate à violência e à criminalidade pressupõe aplicação de pena com equilíbrio; a impunidade e a Justiça lerda são fenômenos de forte carga criminógena.
O aprimoramento do direito positivo depende da construção de uma jurisprudência sempre renovada e adaptada aos valores estatuídos como direitos fundamentais em nossa Constituição. E isso tudo implica reforma do Judiciário, o aprimoramento de suas funções, a depuração de sua forma de atuar; não é uma questão interna que toca exclusivamente aos togados resolver entre eles. Nós, jurisdicionados, destinatários do seu desempenho, temos o direito e o dever de intervir, na condição de consumidores de tais serviços essenciais e atores do ritual da Justiça, como partes, autores, réus ou vítimas, ou como simples expectadores.


Dizer que a corrupção aumenta de forma assustadora também entre os órgãos da Justiça não constitui ofensa aos juízes


A visão republicana de Estado não dispensa o aprofundamento do papel do juiz perante o povo, e assusta saber que a metástase do crime organizado se infiltra por todas as células do corpo brasileiro, inclusive atingindo o Poder Judiciário. Dizer que a corrupção aumenta de forma assustadora também entre os órgãos da Justiça não constitui ofensa aos juízes. Bem ao contrário, isso demonstra atitude de zelo. Afinal, como advogado que sou, e filho de juiz, sinto-me bem quando posso enaltecer a Justiça. Não é fácil, mas sinto ser necessário dizer que muita coisa vem piorando de forma assustadora: o direito vem sendo cada vez mais mal distribuído, por muitas razões externas ao Judiciário, mas também pela incompetência, inércia burocrática, falta de iniciativa, capacidade inovadora ou de zelo de quem o aplica, ou em razão da corrupção que, cada vez mais, conspurca a toga.
O debate se abre e é bom que se abra. O presidente não ofendeu ninguém, muito menos um poder. Os juízes que se viram ofendidos e dirigiram ao STF interpelação não podem afirmar terem sido tocados em sua honra, bem jurídico personalíssimo. Tal bem não é atingido quando alguém, como presidente da República, diz com clareza e sem subterfúgios que quer transparência também no Judiciário, defendendo o controle externo, de forma a fazer crescer o debate sobre o tema. O temperamento direto, firme, do presidente não ficou escondido ou esquecido num escaninho de sua longa carreira política. Aí, pelo menos, está o Lula de sempre, dizendo o que pensa de forma aberta e em sintonia com os valores republicanos.
Esperemos que todas as caixas-pretas sejam abertas, inclusive a da Justiça.


José Carlos Dias, 64, é advogado criminalista. Foi ministro da Justiça (governo Fernando Henrique) e secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Montoro).


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