São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DEMÉTRIO MAGNOLI

Maquiavéis de província

Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria de Direitos Humanos, festejou, em artigo publicado na Folha no último domingo, as "boas notícias de maio", quando "o Brasil foi o mais votado entre os países que representarão a América Latina no Conselho de Direitos Humanos, que acaba de ser criado na ONU". Previsivelmente, ele se esqueceu das "más notícias", que explicam a suposta conquista: os votos recebidos pelo Brasil foram negociados num bazar de apoios mútuos com Arábia Saudita, China, Rússia, Argélia e Cuba. Esses países constam em todos os relatórios imparciais como inclementes e maciços violadores dos direitos humanos básicos.
Na antiga Comissão de Direitos Humanos, o Brasil recusava-se a condenar violadores notórios sob o razoável argumento de que o órgão desmoralizara-se por completo. O novo conselho, com poderes mais amplos, foi criado precisamente para restaurar uma credibilidade perdida. A regra da eleição de seus integrantes por toda a Assembléia Geral destinava-se a dificultar o ingresso dos mais pervertidos regimes.
O México elegeu-se oferecendo um exemplo. O país anunciou que recusaria a prática de "escambo de votos" e não "revelaria suas intenções de voto, evitando assim a influência de fatores estranhos à agenda dos direitos humanos". O Brasil fez o oposto. A óbvia estratégia é desmoralizar o conselho hoje para retomar amanhã, sob o argumento de que o órgão se desmoralizou, a postura de proteção a violadores.
No balaio de votos brasileiro, cabem tanto os pelotões de fuzilamento de Fidel Castro, que matam sob orgiásticos aplausos da esquerda verde-amarela, como a polícia de costumes saudita e os esquadrões de extermínio russos na Tchetchênia. A pusilânime confraternização do governo Lula e do Itamaraty com alguns dos piores regimes do mundo não encontra explicação na lógica da ideologia, mas em concepções de fundo sobre as relações internacionais.
O sistema de Estados contemporâneo é uma teia intrincada, que articula interesses nacionais e valores universais. A arte de identificar a natureza das questões em jogo distingue os estadistas. Nossos maquiavéis de província fracassam seguidamente nesse teste: falta-lhes a palavra dura na crise da Bolívia; sobra-lhes o desprezo pelos princípios na eleição para o Conselho de Direitos Humanos. No artigo 4º, nossa Constituição estabelece que o Brasil "rege-se nas suas relações internacionais" pela "prevalência dos direitos humanos". O governo atual trai os princípios nacionais mais valiosos ao oferecer o aval do seu voto aos ditadores e às suas máquinas de repressão e tortura.
Entregue à ruidosa campanha por uma cadeira de membro permanente no Conselho de Segurança, o Brasil atuou como figurante na única reforma real da ONU, que foi a criação do Conselho de Direitos Humanos. A declaração brasileira de candidatura ao novo órgão é um monumento à indignidade, que retoma em tom menor as fórmulas usadas na declaração de Cuba para desvalorizar os direitos de expressão, de opinião e de organização política. Os Estados Unidos, que não se candidataram ao conselho, celebram discretamente o voto do Brasil. A administração Bush tem pouco a temer quando sauditas, chineses, argelinos, cubanos e russos forem chamados a se pronunciar sobre a rede de centros de tortura da "guerra ao terror".


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Fontes confiáveis
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.