São Paulo, segunda-feira, 18 de junho de 2007

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ALBA ZALUAR

Peles e cabeças

OUTRO DIA , o Brasil quase todo parou para ver a parada passar. Foi impressionante. Todo ano se festeja uma escolha que não cria vítimas nem impede a liberdade alheia. Todo ano aumenta mais o coro e os passantes, a exigir a solução das alas para que amigos possam se encontrar.
Neste ano, 3,5 milhões de pessoas passando enfeitadas na avenida mais ocupada do Brasil (terá parado também?) foi certamente a maior festa popular no país. Não dava mais para encontrar conhecidos, mas a união e o respeito pela pele, pelo contacto físico, pelo direito de escolher a própria sexualidade estavam patentes.
Era a cabeça prestando sua homenagem à pele, sem a qual não consegue ser feliz. Era a racionalidade se juntando à sensualidade e à emoção para celebrar a alegria de poder escolher amigos, companheiros, parceiros.
Logo o desencanto chegou. Tudo indica que na forma da pele de cabeça. A cabeça sem o seu natural enfeite, a cabeça fechada pela pele transformada em barreira, muro, grade para o contacto, para a livre escolha que não impede ninguém de ser livre também. Nada como o que aconteceu na Rússia ou o que desponta em Israel. A morte de um alegre passante foi cometida sorrateiramente por pequeno grupo disfarçado e cheio de disposições mortais. Trouxe o sangue e a dor à festa do prazer.
Os skinheads brasileiros não podem ser tratados como grupo único nem igual aos seus congêneres ingleses e alemães, a maior parte dos quais é defensor da supremacia branca. Só no Brasil poderia haver skinheads mestiços que se proclamam anti-racistas. Mas tem os que se identificam com o fascismo e com o integralismo da década de 30, pelo qual tantos no Brasil já amargaram as dores do cárcere.
Também de São Paulo para toda a nação, depois de lançado o manifesto integralista em 1932, Plínio Salgado atrai para as ruas da capital, em abril de 1933, homens marchantes, igualmente fardados de camisas verdes, sigma e bandeira. Seus valores tradicionais são os de que um homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da família, da pátria e da sociedade.
Essa construção tradicional da masculinidade deu origem à trilogia Deus, Pátria e Família, um movimento de renovação moral que deveria atingir toda a sociedade brasileira. Não atingiu. Abaixo do Equador, como dizem os poetas, é difícil impor a rigidez moral. Mas ficou o rastilho da intolerância que define movimentos que querem todos iguais a si mesmo. Foi essa intolerância que feriu a parada da alegria, reunindo tantos brasileiros, homos e heteros, na confraria da aceitação mútua.


ALBA ZALUAR escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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