São Paulo, quinta, 18 de junho de 1998

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Perto das estrelas

OTAVIO FRIAS FILHO

Num show antigo, Chico Anysio contava a saga do primeiro astronauta brasileiro; ele levaria, colada ao painel de instrumentos, a foto dos filhos com os dizeres: "Papai, não corra". Com ou sem foto, as autoridades locais estão escolhendo agora, entre cinco finalistas, o primeiro brasileiro a ser enviado ao espaço exterior.
O eleito deverá participar de uma missão norte-americana, não sem antes passar cerca de três anos sob treinamento especializado. Isso se não houver os adiamentos que já houve. Em meados da década de 80, os militares e os centros de pesquisa aeroespacial fizeram seleção semelhante, chegando também a cinco finalistas.
Tancredo Neves tinha sido escolhido presidente, aconteceu o rompimento de sabe-se lá que acordo bilateral, o projeto foi adiado. Pelo menos um dos candidatos, que conheci bem, era talhado para o desafio. Não só na parte técnica -fora excelente aluno de matemática, tinha todos os cursos e brevês, praticava mergulho etc.
Também o lado político parecia favorecê-lo. Era civil, mas formado por escola militar; paulista, descendente de imigrantes, mas casado com uma cearense, física e engenheira como ele. Os dois exalavam uma aura de jovialidade esportiva e de leve ironia científica, própria dos físicos. Tinham um casal de filhos adoráveis.
O que pouca gente sabia -e talvez não tenha vindo à tona nem sequer durante os testes preliminares- é que ele estava determinado a ser astronauta desde os 8 ou 9 anos de idade. Essa é a opção vocacional da maioria dos homens nessa faixa, que eles têm o bom senso ou o conformismo de reconsiderar pouco depois. Não ele.
Caso extraordinário de força de vontade, toda a sua vida posterior veio sendo moldada com vistas àquele único propósito, numa paixão silenciosa que não tinha nada do alvoroço das fixações; parecia a certeza de um destino, uma missão. De franzino converteu-se em atlético, e passou a adolescência inteira estudando.
Difícil dizer se essa concentração num objetivo tão longínquo, além de imponderável, ajudava ou atrapalhava suas inegáveis credenciais, ou mesmo se havia ali um grão de sagrado ou de louco. Felizmente, não testemunhei a débâcle, quando o programa foi adiado. Ele abandonou tudo, divorciou-se e mudou para o interior.
Tempos depois chega uma carta, dentro dela vários salmos copiados à mão e os restos do brevê de piloto, picotado. Ele tivera uma iluminação, convertera-se à Renovação Carismática e agora se desfazia das coisas terrenas. Como seu colega de astronáutica infantil, era eu o destinatário daquela relíquia, sua verdadeira cédula de identidade.
Havia lógica, ele continuava determinado a se aproximar, de alguma forma, das estrelas, mas qual a moral da história? Um grande sonho vale uma vida? Não convém, pelo contrário, planejar com tanta antecedência? Você decide. Em tempo: ele está bem, casou de novo e só faz aquilo de que sempre gostou: voar.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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