São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Punir torturas, abrir arquivos

FREI BETTO

A tortura é praticada no Brasil, mormente nas pessoas pobres suspeitas de delitos. É forma de castigo praticada em nossas prisões

A 26 DE junho, dia internacional de apoio às vítimas da tortura, o presidente Lula criou, por decreto, o Comitê Nacional para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil. Melhor teria sido combate, e não controle. O órgão será presidido por Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Lula não poderia ter feito melhor escolha. Vannuchi, preso sob a ditadura, foi torturado em São Paulo. No Tribunal da Justiça Militar, o juiz Nelson da Silva Machado Guimarães duvidou quando o ouviu relatar as atrocidades. A advogada Eni Moreira fez com que Vannuchi se despisse e exibisse, em seu corpo, as marcas das sevícias.
Vannuchi é primo de Alexandre Vannuchi Leme, líder estudantil assassinado sob tortura em dependências do 2º Exército, em São Paulo, a 17 de março de 1973, aos 22 anos. Caberá ao comitê acompanhar projetos e iniciativas que visem a apurar e punir torturas, cooperar com organismos internacionais e promover campanhas. É preciso extirpar das pessoas o medo de denunciar atrocidades cometidas em nome do Estado e da lei, bem como sensibilizar jornalistas, advogados e juízes para a gravidade do crime.
A tortura é sistematicamente praticada no Brasil, mormente nas pessoas pobres suspeitas de delitos. Não se investiga; sevicia-se. Apura-se baseado em delação, e não segundo perícia policial. E é uma forma de castigo praticada em nossas prisões. Basta conferir a recente transformação da Penitenciária de Araraquara, no interior de São Paulo, em campo de concentração, numa demonstração inequívoca de que o Estado, quando não é omisso em matéria de segurança pública, recorre a métodos que pensávamos aposentados após o nazismo.
Excetuado o período da escravidão, a tortura teve o seu auge no país durante a ditadura militar. Toda a nação tem notícia dos casos destas três notórias vítimas: o jornalista Vladimir Herzog, assassinado no DOI-Codi a 12 de agosto de 1975; o operário Manoel Fiel Filho, morto na mesma dependência militar a 17 de janeiro de 1976; e Frei Tito de Alencar Lima.
Este último era meu confrade na Ordem dominicana. O que sofreu em mãos dos oficiais de nossas Forças Armadas e de policiais civis que o levaram à morte em agosto de 1974, aos 28 anos, está detalhadamente descrito em "Batismo de Sangue", livro que chegará às livrarias em agosto, em nova edição da Rocco, e, em 2007, às telas, na versão cinematográfica dirigida por Helvécio Ratton.
O psicanalista Hélio Pellegrino frisou que "a tortura busca, à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente. E, mais do que isso: ela procura, a todo preço, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. (...) O projeto da tortura implica uma negação total e totalitária da pessoa, enquanto ser encarnado. O centro da pessoa é a liberdade. Na tortura, o discurso que o torturador busca extrair do torturado é a negação absoluta e radical de sua condição de sujeito livre".
Santo Agostinho, na Cidade de Deus, repudia a sua aplicação por tratar-se de pena imposta a quem ainda não se sabe se é culpado. No entanto, a Inquisição tentou sacramentar a tortura. "Tortura-se o acusado, com o fim de o fazer confessar os seus crimes", reza o Manual dos Inquisidores, de Nicolau Emérico. Santo Tomás de Aquino, porém, considerou a tortura delito mais grave que o homicídio, pois aquela convoca a vítima a ser testemunha de seu opróbrio.
Infelizmente, a condição de filósofo não impediu Heidegger de apoiar o nazismo, nem a de papa evitou que fossem a favor da tortura Inocêncio 1º (século 5), Inocêncio 4º (século 13) e todos os teólogos que abençoaram a Inquisição.
É preciso denunciar a tortura até que ela seja abominável às nossas sensibilidade e consciência, como o são hoje a escravidão e o abuso sexual contra crianças.
Falta agora ao presidente Lula, ex-preso político, ordenar às Forças Armadas, das quais é constitucionalmente o comandante supremo, que abram os arquivos da repressão. A África do Sul, o Chile, a Argentina e o Uruguai já o fizeram. O Brasil deve tomar a mesma atitude, não por revide, mas por questão de justiça. Primeiro, para com as vítimas e seus familiares. Mas também com as Forças Armadas. A nação tem o direito de saber que nem todos os militares foram coniventes com a tortura e o assassinato de presos políticos.
Enquanto os arquivos permanecerem clandestinos, acobertados pela mentira de que foram destruídos, não se pode separar o joio do trigo, e o ônus recai sobre toda a corporação militar, o que não é justo. E o afirmo como ex-preso político e filho de uma família de militares.


CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, o Frei Betto, 61, frade dominicano e escritor, é autor de, entre outras obras, "Típicos tipos coletânea de perfis literários" (A Girafa) e "Batismo de Sangue". Foi assessor especial da Presidência da República (2003 - 2004).

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