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Corrupção e democracia profunda
CANDIDO MENDES
Mais que a corrupção, o que importa são seus corretivos, aprofundando a democracia. A impunidade não cresceu; começamos a reconhecê-la
LULA RECEBEU há poucos dias
em Lisboa o reconhecimento do
novo no Brasil de agora. Mais que
a corrupção, o que importa são os
seus corretivos, aprofundando a plenitude do regime democrático. A impunidade não cresceu; apenas começamos a reconhecê-la. Saímos, sim,
do regime da "cosa nostra" e da partilha do dinheiro público, no benefício
imemorial de quem senta no poder.
O novo, neste governo, é que a polícia não pára na porta dos palácios. Pode investigar até o fim, sem arquivos
proibidos nem figurões acima da lei,
dignitários públicos ou parentes do
presidente. E só estamos a começo do
aperfeiçoamento democrático.
O primeiro passo é o de chegar, de
fato, ao fim dos inquéritos no Congresso Nacional, especialmente com a
aceitação, pelo Legislativo, da evidência logo desses probatórios, acabando
com o escândalo dos pântanos das comissões absolutórias, porque deliberadamente inconclusivos.
Ao mesmo tempo, começamos a
nos beneficiar dos efeitos do Conselho Nacional de Justiça e do início de
um controle entre os Poderes da República, de vez atingindo o Judiciário.
Do nepotismo ao privilégio de salário.
E o Ministério Público avança na
defesa da sociedade civil, especialmente por meio da condenação do
abuso contumaz no comezinho das
relações do poder com os cidadãos.
Das filas de aposentados aos apagões
de aeroporto e ao que ainda mal começa no Brasil, como o cumprimento
dos prazos razoáveis de julgamento.
A democracia profunda vai exigir
ainda o avanço do direito de resposta
ao insulto à imagem cidadã, no roldão
midiático. E se rematará na força, afinal, das ações populares contra violências adormecidas e constantes do
conformismo brasileiro.
O novo no país de hoje é a tomada
de consciência direta da coletividade,
no que é a verdade do clamor social.
Ele nasce de quem vive a injustiça e a
carência e não precisa da sua interpretação nem da sua retórica pelo
país instalado.
O sucesso do atual governo nasce
dessa consciência primordial que sobrevive, inclusive, ao fracasso do dito
partido diferente -o PT- e dá ao Brasil do outro lado a noção de que chegou ao poder e sabe quais são as suas
opções de fundo. O país que sairá dos
atuais escândalos é o que venceu o
moralismo fácil em todos os seus álibis para se furtar à remoção da nossa
injustiça social estrutural.
O voto de base em Lula respondeu à
exigência de priorizar a desmarginalização coletiva e o acesso social -como permitiram a educação, a saúde e
o Bolsa Família- mesmo antes da
consolidação do emprego. O Brasil
dos movimentos sociais é muito melhor que o da discussão infinita da reforma política e suas bizantinas panacéias de mudança.
Essa posição no avanço da democracia definiu um reconhecimento
internacional do Brasil na defesa dos
direitos humanos. Faz parte da ideologia do status quo internacional admitir que a defesa da cidadania possa
ser condicionada pelos contextos culturais. É o que leva a reconhecer que o
documento das Nações Unidas é bastante distinto da declaração do Cairo
quanto ao reconhecimento pelo Islã,
de imediato, desses mesmos direitos
humanos.
A tese inversa é a de que o clamor
pela identidade é prioritário na afirmação da condição humana. E o libertar-se das estruturas de marginalização coletiva precede todo o decálogo
dos ditos direitos da maioria das
Constituições ocidentais. Há que começar pelos direitos a direitos, em
que se emparelham a luta contra a
opressão e a violência, a garantia da
diferença como primeiro enunciado
do valor da pessoa. Ao defendê-los, o
Brasil de hoje deixa de lado os códigos
das elites em que a velha cordialidade
traduzia o conformismo e a submissão do mais longo passado de escravatura que teve uma nação moderna.
Nossa cidadania empresta à dignidade emergente uma tônica afirmativa e inovadora, a merecer a riqueza
única de direitos individuais que nos
deu a Carta Magna do dr. Ulysses.
Do respeito à imagem ao direito de
resposta e ao habeas data, ao lado do
velho habeas corpus, que nos acautela
dos segredos arbitrários da informação governamental típicos da ditadura militar, a voltar à tona nas guerras
de insinuações a que podem levar as
operações Navalha e similares.
O avanço final da democracia, nesses dias, é o de quanto coibir os excessos dessa nova liberdade de investigar. Sua garantia é a rapidez com que
o Ministério Público põe-se à obra antes do irremediável dos crimes de
imagem ou do abuso das algemas
conscientes.
CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira
de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do
"senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura).
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