São Paulo, quarta-feira, 18 de julho de 2007

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Corrupção e democracia profunda

CANDIDO MENDES

Mais que a corrupção, o que importa são seus corretivos, aprofundando a democracia. A impunidade não cresceu; começamos a reconhecê-la

LULA RECEBEU há poucos dias em Lisboa o reconhecimento do novo no Brasil de agora. Mais que a corrupção, o que importa são os seus corretivos, aprofundando a plenitude do regime democrático. A impunidade não cresceu; apenas começamos a reconhecê-la. Saímos, sim, do regime da "cosa nostra" e da partilha do dinheiro público, no benefício imemorial de quem senta no poder.
O novo, neste governo, é que a polícia não pára na porta dos palácios. Pode investigar até o fim, sem arquivos proibidos nem figurões acima da lei, dignitários públicos ou parentes do presidente. E só estamos a começo do aperfeiçoamento democrático. O primeiro passo é o de chegar, de fato, ao fim dos inquéritos no Congresso Nacional, especialmente com a aceitação, pelo Legislativo, da evidência logo desses probatórios, acabando com o escândalo dos pântanos das comissões absolutórias, porque deliberadamente inconclusivos.
Ao mesmo tempo, começamos a nos beneficiar dos efeitos do Conselho Nacional de Justiça e do início de um controle entre os Poderes da República, de vez atingindo o Judiciário. Do nepotismo ao privilégio de salário. E o Ministério Público avança na defesa da sociedade civil, especialmente por meio da condenação do abuso contumaz no comezinho das relações do poder com os cidadãos. Das filas de aposentados aos apagões de aeroporto e ao que ainda mal começa no Brasil, como o cumprimento dos prazos razoáveis de julgamento.
A democracia profunda vai exigir ainda o avanço do direito de resposta ao insulto à imagem cidadã, no roldão midiático. E se rematará na força, afinal, das ações populares contra violências adormecidas e constantes do conformismo brasileiro.
O novo no país de hoje é a tomada de consciência direta da coletividade, no que é a verdade do clamor social. Ele nasce de quem vive a injustiça e a carência e não precisa da sua interpretação nem da sua retórica pelo país instalado.
O sucesso do atual governo nasce dessa consciência primordial que sobrevive, inclusive, ao fracasso do dito partido diferente -o PT- e dá ao Brasil do outro lado a noção de que chegou ao poder e sabe quais são as suas opções de fundo. O país que sairá dos atuais escândalos é o que venceu o moralismo fácil em todos os seus álibis para se furtar à remoção da nossa injustiça social estrutural.
O voto de base em Lula respondeu à exigência de priorizar a desmarginalização coletiva e o acesso social -como permitiram a educação, a saúde e o Bolsa Família- mesmo antes da consolidação do emprego. O Brasil dos movimentos sociais é muito melhor que o da discussão infinita da reforma política e suas bizantinas panacéias de mudança.
Essa posição no avanço da democracia definiu um reconhecimento internacional do Brasil na defesa dos direitos humanos. Faz parte da ideologia do status quo internacional admitir que a defesa da cidadania possa ser condicionada pelos contextos culturais. É o que leva a reconhecer que o documento das Nações Unidas é bastante distinto da declaração do Cairo quanto ao reconhecimento pelo Islã, de imediato, desses mesmos direitos humanos.
A tese inversa é a de que o clamor pela identidade é prioritário na afirmação da condição humana. E o libertar-se das estruturas de marginalização coletiva precede todo o decálogo dos ditos direitos da maioria das Constituições ocidentais. Há que começar pelos direitos a direitos, em que se emparelham a luta contra a opressão e a violência, a garantia da diferença como primeiro enunciado do valor da pessoa. Ao defendê-los, o Brasil de hoje deixa de lado os códigos das elites em que a velha cordialidade traduzia o conformismo e a submissão do mais longo passado de escravatura que teve uma nação moderna. Nossa cidadania empresta à dignidade emergente uma tônica afirmativa e inovadora, a merecer a riqueza única de direitos individuais que nos deu a Carta Magna do dr. Ulysses.
Do respeito à imagem ao direito de resposta e ao habeas data, ao lado do velho habeas corpus, que nos acautela dos segredos arbitrários da informação governamental típicos da ditadura militar, a voltar à tona nas guerras de insinuações a que podem levar as operações Navalha e similares.
O avanço final da democracia, nesses dias, é o de quanto coibir os excessos dessa nova liberdade de investigar. Sua garantia é a rapidez com que o Ministério Público põe-se à obra antes do irremediável dos crimes de imagem ou do abuso das algemas conscientes.


CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

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